fuga #1 1950

Uma das preocupações dos carcereiros para tentarem contrariar, tanto quanto possível, as lutas que, em Peniche, os presos políticos eram com frequência forçados a travar pela melhoria das condições da vida prisional, consistia em, de vez em quando, fazerem mudanças de presos de umas salas para outras, particularmente dos camaradas mais responsáveis, que eles consideravam e apelidavam de "cabecilhas". Estamos a referir-nos a uma fase em que ainda não havia celas na cadeia de Peniche.


No entanto, havia nisto uma grande desorientação dos carcereiros, talvez até porque nenhum processo provava dar resultado. Umas vezes separavam e dispersavam os tais "cabecilhas" por várias salas (ou casernas, como neste tempo ainda se designavam em Peniche as habitações dos presos), outras vezes juntavam-nos todos numa só sala, separados da massa dos presos.
No primeiro caso, pretendiam impedir que pudessem combinar entre si e organizar qualquer acção, visto estarem separados e impossibilitados de comunicar devido ao total isolamento dumas salas em relação às outras. No segundo, estando juntos mas isolados dos restantes presos, não poderiam exercer a sua influência nociva sobre eles e arrastá-los para a luta. Estas eram as conceções dos carcereiros, cujos métodos, contudo, não demonstravam grande eficácia.

Foi numa destas mudanças que se criaram condições muito favoráveis à organização e preparação de uma fuga. Alguns dos presos mais responsáveis então em Peniche, nomeadamente Jaime Serra, foram transferidos para uma sala (antes desactivada), onde já se encontrava isolado, havia algum tempo, Francisco Miguel, uma sala afastada da zona central do Forte onde estavam a população prisional e os serviços da cadeia. Com Jaime Serra foram vários presos de um processo do Algarve, vários outros do Porto e Gabriel Gomes – este condenado a longos anos de prisão por ter sabotado alguns aviões, numa tentativa putchista de Abril de 1947. Totalizavam cerca de vinte presos.
Esta sala, conhecida pela sala 5, situava-se no extremo sul do Forte, encostada à muralha exterior, ao lado das instalações do destacamento da GNR que ali fazia serviço de vigilância e que era rendido mensalmente.
Como nesse tempo o corpo de guardas prisionais em Peniche não era ainda muito grande, os carcereiros tinham dificuldade em manter lá um guarda permanente. E como a sala estava ali mesmo nas barbas da GNR, o guarda prisional só lá ia nos momentos da rendição para contar os presos, às horas da refeição para que fossem buscar a comida à cozinha, às horas do recreio, e pouco mais.


O facto da sala ficar encostada à muralha que dava para o mar e a pouca vigilância dos guardas da cadeia criavam boas condições para a preparação de uma fuga. Nesse sentido, começou-se a trabalhar. Duas hipóteses foram consideradas, uma delas como alternativa à outra e para o caso de essa ter que ser abandonada.
A primeira, por ser a que oferecia melhores condições de êxito e possibilidades para a saída de mais camaradas, era abrir um buraco na muralha, por onde sairiam directamente para o mar os presos interessados em fugir. Previa-se que chegariam ao molhe do porto sem muita dificuldade e sem grande perigo de serem detectados visto a distância ser relativamente curta.
A segunda, consistia em serrar a grade de uma janela que dava para o interior da fortaleza, subir umas escadas em pedra à face da muralha que levavam ao terraço da mesma, saltar para aí e, pelo lado oposto, descer depois para o mar através de uma escada de corda previamente preparada.
Esta última hipótese era bastante mais perigosa, visto que todo o percurso até ao início da descida para o mar (mais concretamente sobre as pedras que existiam encostadas à muralha) era feito debaixo do ângulo de visão da sentinela da GNR que, ali próximo, sobre o terraço das muralhas, fazia vigilância, andando de um lado para o outro. Era necessário aproveitar os momentos em que o guarda marchava de costas para nós.
Era também a mais limitada, decidindo-se que por ali não poderiam sair mais do que dois camaradas, exactamente pelos perigos que oferecia de sermos detectados.
Era ainda bastante perigosa no que se referia ao risco de acidente, dado que a escada tinha que ser fixada no topo da muralha e existia o perigo de, na descida, com o peso e os balanços do corpo, a escada se desprender ou mesmo partir. As cordas eram feitas com pontas de fio unidas e entrelaçadas, igual ao das redes dos pescadores, a que se ligavam depois bocados de pau de vassoura, dando-lhe a forma de escada.
Lançámo-nos, pois, ao trabalho na preparação da fuga através da muralha e, nas horas vagas, confecionávamos corda para a hipótese de termos que recorrer a esta alternativa.

Demarcado o sítio na muralha onde se iria abrir o buraco, logo se adquiriram umas folhas de papel de embalagem (papel ferro) com que se forrou a parede naquela zona, se colocaram uns cabides e se começou a dependurar ali algumas roupas, como sobretudos e casacos. Isto tinha o objectivo de habituar os carcereiros a verem aquele sítio como o lugar onde os presos penduravam a roupa e que aquelas folhas de papel se justificavam para a preservar da humidade da parede. Isto até era verdade, mas havia outra justificação, e esta só para nós, que era termos o buraco sempre tapado.

De posse de algumas ferramentas que, precavidamente, se tinha ido reunindo iniciou-se o trabalho. A tarefa não era fácil. Para além de desconhecermos a espessura da muralha e dos meios muito rudimentares que tínhamos para trabalhar, tínhamos ainda de resolver outro problema não menos complicado: onde esconder tudo quanto dali se tirava, como pedras e terra, todo aquele entulho.
Embora não houvesse guarda permanente no sítio, iam lá algumas vezes ao dia. À quinta-feira de cada semana tínhamos que pôr as camas na rua deixando tudo a descoberto e guardas da GNR rondavam sempre por ali próximo.

Alguma terra conseguíamos deitá-la ao mar, quando vazávamos o caixote do lixo através de uma ameia na parte baixa da muralha próximo da porta da sala, o que geralmente se fazia sob os olhares do guarda. Mas isto era uma gota de água no oceano – no caso, uma gota de terra! E a outra? E as pedras – algumas bastante grandes!?
A solução foi rasgarem-se algumas mantas e lençóis, com eles fazerem-se sacos, enchê-los e metê-los debaixo das camas. Com algumas pedras fizeram-se bonitos embrulhos, com papel apropriado, que se colocaram sobre prateleiras (bastante resistentes) que havia à volta da sala onde se punham malas e outras coisas. Outras ficaram no chão, mas devidamente acondicionadas.

Estavam as coisas a andar normalmente – a normalidade possível nestas situações – quando estalou uma greve da fome espontânea, por parte dos restantes presos do Forte que se encontravam na zona de que estávamos isolados. O buraco já tinha cinco metros de profundidade a caminho do exterior.
Tínhamos furado a parede interior da muralha com cerca de dois metros de espessura, atravessado depois uma zona de entulho com cerca de três metros e chegado à parede exterior, que calculávamos tivesse pelo menos outros dois metros. Era um túnel que íamos escorando como podíamos.

Não estávamos nada interessados numa greve da fome naquele momento devido à tarefa que tínhamos em mãos. Mas ela surgia e não tínhamos nada a fazer senão participar. A greve da fome surgia como resposta dos presos à acção repressiva e provocatória dos carcereiros, ambiente que aliás estava na origem do nosso isolamento na sala 5. Era nosso dever não apenas entrar nela mas procurar intervir, por todos os meios possíveis, na sua orientação e direcção, pois ali estavam os presos politicamente mais responsáveis. Foram sete dias sem ingerir qualquer alimento, acompanhados de outras formas de protesto, como recusa de tratamentos e visitas das famílias depois de estas saberem o que se passava.

Ao fim de uma semana de greve da fome era bastante grave a situação dos presos políticos no Forte de Peniche. A sua repercussão no exterior, devido à grande pressão das famílias e de muitas outras pessoas solidárias com a sua luta, começava a preocupar os fascistas. Foi neste quadro, que enviaram à cadeia dois inspectores da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, acompanhados de um médico, para tentarem resolver a situação.
Estes ouviram os presos sobre as razões da greve da fome, prometeram que alguns dos problemas que tinham levado à greve seriam resolvidos, sobre outros prometeram intervir, insistiram para que a terminássemos, permitiram finalmente que uma delegação da nossa sala fosse às outras salas encontrar-se com os outros presos para, em conjunto, se decidir da atitude a tomar. Dos contactos havidos, e perante as promessas feitas, saiu a decisão de se pôr fim à greve. De imediato não estávamos em condições de prosseguir a tarefa que tínhamos em curso e que suspendêramos por causa da greve da fome. Bastante enfraquecidos, cada um de nós com vários quilos a menos, necessitávamos de um período de recuperação até que se pudesse continuar.

Entretanto, passados alguns dias, talvez semanas, tomou-se conhecimento de que iam ser transferidos presos para a cadeia de Setúbal para serem iniciadas obras na de Peniche. Uma das nossas reivindicações, no conjunto das que tinham levado à greve, era exactamente a melhoria das instalações prisionais. Seguiu-se a saída de dois da nossa própria sala.
Certos de que mais se seguiriam e podíamos sair todos dali, decidiu-se pôr imediatamente em execução o plano alternativo. O plano da muralha foi abandonado. Nestas condições, a fuga tinha de limitar-se aos dois camaradas mais responsáveis que ali se encontravam, Francisco Miguel e Jaime Serra. Mais, seria aumentar consideravelmente o risco de ser detectada pelas sentinelas.

Tudo correu bem. Cortada a grade até ao fim, montada a vigilância necessária e possível para controlar os movimentos da sentinela mais próxima, distribuídas as tarefas que cada um tinha de realizar no momento, próximo das três horas da manhã do dia 3 de Novembro de 1950 os nossos dois camaradas saíram como previsto, e com êxito, da Fortaleza de Peniche.


O ferro cortado da grade voltou a ser colocado no sítio, colado com uma massa feita de sabão e limalha da serradura, o que lhe dava um disfarce quase perfeito, e uns bonecos feitos com roupa foram colocados nas duas camas vazias a imitar os corpos, pois às cinco horas o guarda vinha contar e era necessário certificar-se de que estavam todos. E assim foi!

Quando a partir das 7 da manhã nos levantámos sem que nada de anormal tivesse ocorrido, a nossa sensação de alívio e bem estar era enorme. Àquela hora, mais de quatro horas passadas, os nossos camaradas estariam certamente a salvo de qualquer perseguição consequente à fuga, pensávamos nós.

Só já muito próximo das nove horas a fuga foi detetada. Alguém da cadeia terá visto a escada a balançar na muralha. Imediatamente um guarda se dirigiu à sala a correr, abriu a porta, apitou para formarmos, contou, identificou um nome dos que faltavam e perguntou, quem era o outro. Mudos estávamos, mudos continuámos. Insistiu, voltou a contar, descobriu ele próprio quem era, fechou a porta, foi embora a correr como tinha vindo.

Tínhamos connosco uma garrafa de vinho do Porto que não me recordo como tinha entrado. Bebêmo-la, fizemos a festa. Os carcereiros estavam ainda sem saber como é que os presos tinham saído da sala para fugir. Tudo parecia intacto.
Em dado momento, o chefe dos guardas da cadeia mais o sargento da GNR aproximaram-se da janela.
Enquanto aquele olha fixamente para a grade, o sargento, apercebendo-se, diz com toda a convicção:
-Por aqui não foi. A sentinela teria visto. Deve ter sido lá por trás!
-Lá por trás era impossível! – diz o outro.
De repente estende a mão e arranca o bocado de ferro cortado.
-Vê?
Atrapalhado, o sargento desculpa-se com a lâmpada que ilumina o sítio e que às vezes se apaga. E lá se foram embora, um contente por ter descoberto, o outro nem tanto.

A meio da manhã, o diretor da cadeia manda chamar à sua presença Gabriel Gomes. Quer saber como foi, como é que os presos fugiram, a que horas, e por aí adiante: Ameaçou, provocou. Desistiu. E nós presos, vivíamos um momento de felicidade.

Quando, pelas duas horas da tarde aproximadamente, vimos, através das grades da janela da nossa sala, passar Francisco Miguel que, entre dois guardas, acabava de reentrar na cadeia, foi como se um enorme balde de água gelada nos tivesse encharcado da cabeça aos pés. Contudo, o facto de vir só, deixava-nos a esperança de que Jaime Serra tivesse conseguido escapar à perseguição.

José Vitoriano


Por deficiente coordenação com o exterior, nem o apoio no interior da vila estava assegurado para essa noite, pois o camarada Saul estava para Lisboa, segundo nos foi dito posteriormente, e a companheira ou não estava avisada ou não quis colaborar. Perante a nossa insistência ameaçou mesmo chamar a polícia.
Nesta situação tivemos que meter os pés à estrada sem qualquer outro apoio alternativo, nem em Peniche, nem em qualquer outro local. Esta grave lacuna iria custar-nos caro.

A saída de Peniche por estrada era uma única e ladeada por um posto de Polícia de Trânsito, como existiam nessa época em pontos estratégicos de circulação rodoviária.
Ultrapassámos, lateralmente, pelos terrenos adjacentes, o posto da polícia e, já pela manhã, alcançámos uns campos próximos da costa marítima, onde nos escondemos numa vala debaixo de uns silvados, uma vez que o dia começava a clarear.
Como disse depois o Chico: "Pouca sorte a nossa!"

Era o dia da abertura da caça e manhã adiante apareceram uns cães a ladrar furiosamente e, atrás dos cães, Os caçadores. Estes mais perigosos do que aqueles.
Os cães ladravam cada vez mais e não arredavam pé. Os caçadores, julgando haver caça, preparavam as espingardas para atirar, ao mesmo tempo que diziam:
— E bicho! É bicho!
Não tivemos outro remédio senão sair da toca e mostrarmos que não éramos os tais bichos que esperavam.
Os caçadores ficaram esclarecidos, mas agora também desconfiados, sem saber que tipo de homens era e o que fazíamos ali. Ficámos sem esconderijo e tivemos que procurar outro.
Poucos metros andados, demos de caras com o guarda Esteves, bem nosso conhecido, que ia entrar de serviço na Fortaleza de onde acabávamos de sair com tanto trabalho. O guarda Esteves reconheceu-nos imediatamente. Já era um indivíduo corado, mas ficou vermelho com a surpresa. Não disse nada, mas deu meia volta e manobrou de modo a não nos perder de vista, acompanhando-nos a uma certa distância.
À entrada de S. Bernardino, aldeia onde morava o guarda, decidimos separar-nos, pois já era clara a manobra do indivíduo no sentido de buscar apoios para nos capturar. Para ele era "caça grossa". Como morava perto, muniu-se rapidamente duma espingarda e imobilizou logo ali o Chico. Este, para me dar tempo, ficou a esgrimir com ele, tanto tempo quanto pôde, gritando e barafustando.
A partir desse momento, o destino do Francisco Miguel estava decidido. O guarda Esteves, com o auxílio de familiares e de outros guardas que moravam naquela aldeia, prenderam-no, levando-o para a Fortaleza, onde foi rudemente tratado. Esteve algemado no "segredo" durante 17 dias e foi posteriormente enviado pela PIDE de novo para o Tarrafal, onde já havia estado durante 6 anos.

No momento da prisão do Chico, o meu destino era ainda urna incógnita. Tendo-nos separado, conseguimos realmente dividir de imediato os nossos inimigos. Saltei uns muros e corri sempre durante bastante tempo na direcção do mar.
Na encosta marítima, que era ali bastante alta e escarpada, escondi-me o melhor que pude numa espécie de cova, tendo dormido até ao fim do dia. Ao acordar, a primeira coisa que me surpreendeu agradavelmente foi estar vivo e em liberdade. Avistava os barcos de pesca ao longe e decidi permanecer no local até à noite.
Já bem noite dentro, uma noite muito fria de Novembro, arranquei em direcção ao Sul, sempre junto à costa, avançando cautelosamente. Tinha uma fome terrível, comendo nas hortas por onde passava tudo que se parecesse com legumes.

Durante dois dias caminhei em direcção a Lisboa, avançando de noite e escondendo-me nos campos durante o dia. Nos percursos feitos na estrada, evitava cuidadosamente os faróis dos automóveis, saltando, mesmo descalço, pois já não aguentava os sapatos, para fora da estrada.
Numa feira, não sei qual. nas cercanias de Torres Vedras, comprei pão e queijo e também umas botas, pois os malfadados sapatos novos que havia utilizado na fuga tinham-me posto os pés a sangrar durante as noites da caminhada.
No dia 6 à noite, três dias após a fuga, percorrendo a partir da Zibreira a última parte dessa longa caminhada, cheguei a Mafra, onde procurei a casa do camarada Medeiros, que havia estado preso em Peniche e que eu sabia ter ali uma farmácia.

Foi este camarada e a esposa que me deram dormida, depois de um bom banho. Na manhã seguinte transportaram-me no seu carro para Lisboa, seguindo caminhos secundários. No dia 7 de Novembro, aniversário da Revolução de Outubro, entrei em contacto com o Partido para continuar, em liberdade, a luta pela Liberdade!

Jaime Serra

Sem comentários:

Enviar um comentário