plano para hoje #2 caminhos de ferro


O menino de hoje vem diretamente do Peniche na História e na Lenda e é o projeto da Estação de Caminhos de Ferro de Peniche.
Talvez devido a ser preciso um desvio no caminho para cá chegar, Peniche acabou por nunca assistir à chegada de nenhum comboio, o que não é habitual numa terra com esta dimensão e causa estranheza ao pessoal de outras terras quando lhes digo que não há comboio até Peniche.

a explicação devida

Várias pessoas ouviram uma explosão por volta do meio-dia e cada uma apresenta uma explicação diferente para o sucedido. Devo dizer que estão todas erradas. Vários especialistas chegaram à conclusão de que o que se ouviu foi uma destas coisas:
-Acidente devido a avaria nos semáforos;
-Eclusa do fosso a rebentar;
-Petróleo a brotar da superfície;
-Tozé Correia montado numa prancha a apanhar uma onda.

guia da contestação

Hoje em dia há cada vez mais informação proveniente de fontes não especializadas, sejam blogs, redes sociais ou a própria conversa com as pessoas, que se interessam muito mais por política do que antigamente.
Estas fontes são muitas vezes parciais e a informação é fornecida com o objetivo de contestar a política vigente, no entanto muitas vezes são usadas meias-palavras ou conceitos abstratos que não entendemos muito bem, por isso eu elaborei um pequeno guia para nos ajudar a perceber o significado de algumas expressões e até a possivelmente também nos envolvermos na contestação.


O povo

Há várias definições diferentes para esta expressão dependendo do contexto em que é usada:
-Eleitorado do PCP. O povo vai sair à rua dia 2 Março.
-Entidade imaginária que tem como código de conduta a Constituição. O povo conquistou o direito a...
-Grupo de pessoas que é objeto de malícia por parte de outro grupo de pessoas - eles. Zé Povinho também pode ser usado. Eles roubam e o povo/Zé Povinho é que paga a fatura.


Eles

Existem para usurpar e oprimir o povo, que lhes é dependente de alguma forma, sejam eles políticos, empresários ou banqueiros.
eles é um conceito bastante flexível, no sentido de o meu pacato vizinho poder momentaneamente passar a pertencer aos eles desde que por algum motivo ascenda a uma posição pública relevante.
Portanto, eles são iguais ao povo, só que com poder.


Toda a gente já percebeu que...

O interlocutor apresenta uma opinião como se fosse um facto impessoal, para que tenha mais impacto e seja irrefutável.
Por exemplo: Toda a gente já percebeu que este governo tem de cair. Mesmo que discordemos desta afirmação, não podemos refutá-la, por um lado porque há a noção de uma força conjunta à qual não é possível fazer oposição e por outro a noção de não ser possível a discórdia devido a esta afirmação ser imposta sem deixar espaço para o contraditório.


Ninguém cala o povo

É remanescente dos tempos a seguir ao 25 de Abril, mas não tem sentido literal, pois toda a gente sabe que hoje pode falar à vontade por mais absurdo que seja o que tenha a dizer. Neste caso o povo é uma entidade una e temível, que não tem a capacidade de os aniquilar, mas com poder suficiente para limitar algumas ações que eles pretendam levar a cabo contra o povo.


O povo tem de sair à rua

É uma expressão bastante portuguesa, ao remeter para uma ação geral a realização da vontade do interlocutor. Assim sendo, supostamente tem o sentido do raramente ouvido temos de sair à rua mas com a diferença do autor da frase não ter a mínima intenção de sair à rua.
Chega ao extremo de tomar a forma de uma frase que deixei no blog há umas semanas: o povo português tem que se revoltar ir para a rua e defender os nossos direitos. Quer isto dizer: tenho o direito que lutem por mim.


E pronto, foi o post reacionário de hoje. Um abraço.


Para quem não viu os Óscares, deixo aqui a homenagem de Seth MacFarlane ao cinema. Ou a parte dele.

plano para hoje #0

A vida de uma cidade moderna é feita de conquistas e derrotas - mais hospital, menos hospital, mais cinema, menos cinema.
No entanto, há muitos projetos que sofreram aborto sem sequer ir a referendo. Será esses nados-mortos que vamos dar à luz nesta secção que irá buscar sementes tanto a planos já há muito estéreis como a promissores recém-nascidos. Amamentemo-los.

plano para hoje #1 visconde

Maria Pires Lobo elaborou um ambicioso plano de ordenamento para o inordenável Bairro do Visconde, o único bairro medieval português construído no século XX.


É proposta a substituição da Nigel por um bloco de apartamentos e a construção de um grande centro comercial em frente ao Porto da Areia Sul. De notar que este projeto contempla já o aquecimento global, pois apresenta um nível do mar bastante superior ao atual.


Uma arrojada ponte constituiria o acesso entre o bairro e coisa nenhuma.


E seria feita uma série de diversos arranjos.


O Bairro do Visconde é um sítio bastante pitoresco, mas não sei até que ponto estas alterações são necessárias, visto que não me parece interessante, com tanto sítio melhor subaproveitado em Peniche, ser dada visibilidade turística a esta zona. Por isso não me chateia muito que esta obra não passe da criativa tese de doutoramento da autora.


Porque a partir daí mudou tudo. A privacidade passou a ser o principal alvo da televisão, a linguagem grosseira passou a ser tolerada, ser estrela de televisão passou a estar ao alcance de qualquer anónimo desde que conseguisse arranjar forma de conquistar popularidade e passou a haver um quarto canal, que para a maioria das pessoas não tem mais do que 13 anos.

Escavar e fazer pontes é muito fixe, mas não chega.
Vou esperar que a segunda fase das obras chegue depressa e se tiver muita sorte pode ser que ainda esteja vivo quando chegar o dia.

A intervenção foi organizada por elementos do grupo “Que se lixe a troika” – como forma de promover a manifestação do dia 2 de Março – e por um conjunto “independente” de estudantes universitários.


Por que é que de há uns tempos para cá ser independente tornou-se sinónimo de pertencer ao PC ou ao Bloco?


Eu acho que os nossos produtores musicais estão a confundir música para crianças com música para retardados mentais.
No meu tempo (pronto, há dez/quinze anos) a música para os mais pequenos ainda não estava cheia de filtros e tabus e portanto ainda não era sinónimo de ridículo:


para quem não chegou a ver


o estranho caso da eclusa do fosso

Já ouvi várias versões, mas a mais recente é a de que as comportas não funcionam com grandes diferenciais de água, o que significa, que não vão poder fazer as funções para as quais foram pensadas e construídas.



Se não é requisito do projeto funcionar com grandes diferenciais de água, dêem-me 0,01% do que gastaram e eu meto lá umas chapas de ferro, que fazem o serviço à mesma.

um mocho - vá-se lá saber como - ficou aprisionado debaixo do capot do jipe de uma condutora norte-americana



Provavelmente já devem ter visto este caso no Peniche Online, mas é tão bom que também o deixo aqui.

Notícia de 30-1-2013:

Isaura Santos, Ernesto Batista e o cão Max/foto Carlos Barroso

O casal, que agora se encontra nas ruas das Caldas, apela à sensibilidade para que lhes arranjem trabalho, de modo a poderem alugar uma casa e assim recomeçarem a vida. 
Até lá têm tido ajuda de vários desconhecidos que trouxeram também o caso para a praça pública, algo que o casal não se envergonha e apenas agradece, pois o seu principal objetivo é viver com dignidade e com trabalho.
Quem tiver vontade e possibilidade de ajudar poderá ligar para o 962 402 820.
Entretanto, sabe o JORNAL das CALDAS que a junta de freguesia de santo Onofre terá realizado um contato com o casal, assim como a ação social da autarquia, mas desconhece-se o que terá daí resultado.


Reportagem da TVI no Carnaval de Torres: link.





Atualização: o Peniche Online retirou o vídeo.


Daniel Oliveira analisa o peso que cada político teve no atual estado do país. Eu concordo a 100%.

under cover of darkness

Tenho estado a trabalhar bastante para posts que vou colocar aqui no blog, e normalmente os posts que me dão mais trabalho costumam ser os menos maus.
Estou a aproveitar o modo de obturação lenta da minha máquina fotográfica para tirar fotos de Peniche ao entardecer. Será uma rotura abrupta com o que tenho feito até agora - achar que a ocasião merece registo e sacar do telemóvel.
Outra secção será sobre história e vai pegar em temas sobre os quais há pouca informação, pelo que não posso fazer nada a não ser mostrar os elementos que tenho e insinuar o resto. Neste momento estou a tentar minimizar os disparates que daí possam surgir mas também não podemos ser bons todos os dias. Ou se calhar podemos e eu é que não sou. Faço a pesquisa e depois fico a olhar feito parvo para o que encontrei. Enfim alguma coisa terá de sair daqui. O melhor título que me ocorreu para tal iniciativa é... "debaixo de sombra".
Que é como quem diz "under cover of darkness":


fuga #4 1960

Passado o chamado "período de observação" passámos a ter recreio em coletivo e as refeições passaram também a ser colectivas. No recreio era proibido conversar em voz baixa e no refeitório era simplesmente proibido falar no decorrer das refeições.
Mesmo nestas condições começámos a organizar o trabalho partidário, tendo sido dada toda a prioridade ao estudo das possibilidades de fuga.
Nunca me conformei com a ideia de que haja alguma prisão absolutamente invulnerável. Passámos a estudar com atenção todas as hipóteses, os riscos e o grau de possibilidades de tal ou tal hipótese. As nossas dificuldades eram acrescidas pelo facto de em qualquer caso excluirmos actos de violência que pudessem conduzir à perda de vidas. Antes, procurar explorar qualquer possibilidade de colaboração, aliciamento ou "distração" da parte dos guardas.
Formámos um organismo restrito, constituído por Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes e eu próprio, com a incumbência exclusiva de estudar sistematicamente todas as hipóteses de fuga. Mesmo com as dificuldades de comunicação existentes, reuníamos todos os dias.


Numa dada altura, por meados de 1959, o camarada Joaquim Gomes conseguiu meter conversa, através das grades da janela da sua cela, com o guarda da GNR que fazia ali serviço e que viria a ser a chave mestra da fuga, o soldado Jorge Alves. Dessa conversa pôde concluir-se estarmos perante uma pessoa revoltada, como havia muitas, por razões puramente profissionais que se extravasavam de forma vaga para o plano político. Percebeu-se que o homem se considerava prejudicado na sua carreira profissional, pois, segundo ele, já deveria ter sido promovido a um posto superior, "talvez já devesse ser sargento". Escusado será dizer que o camarada Joaquim Gomes apoiou a sua revolta procurando conduzi-la para o plano político. Tudo isto em conversas muito rápidas e soltas nos períodos em que o soldado da GNR estava de serviço. O regulamento de serviço proibia lhes terminantemente conversar ou alimentar qualquer conversa com os presos políticos. O certo é que a conversa foi evoluindo e nas vezes que o guarda Jorge Alves passou por aquele serviço de "diligência" em Peniche a situação ficou suficientemente amadurecida para, por via partidária, o "cerco político" passar a fazer-se no exterior.
Deve insistir-se no melindre destes contactos unia vez que este homem não tinha nenhum esclarecimento político. O que eventualmente o podia levar a colaborar nos nossos propósitos era o sentimento de revolta e algum interesse material. No tratamento destas questões com a direção do partido no exterior, tudo era tratado literalmente em cifra escrita em papel de mortalha, mais facilmente "passável" pelas malhas da vigilância dos carcereiros. Em virtude dum comportamento calculado, na relação com os carcereiros, havíamos conquistado nesse período uma série de "regalias" no dia-a-dia prisional. Tínhamos jornais que circulavam livremente de cela em cela, passámos a ter acesso ao refeitório à tarde, com hora de leitura suplementar. Podíamos praticar jogos de xadrez e damas e, a partir de certa altura, foi mesmo autorizada a audição de discos, num gira-discos vindo do exterior e montado no refeitório. Esta situação aumentou as nossas possibilidades de contacto de uns com os outros.


Nos últimos dois meses de 1959, o plano de fuga avançou rapidamente na sua concretização graças ao trabalho desenvolvido no exterior pelo Secretariado do Comité Central, constituído então por Octávio Pato, Joaquim Pires Jorge e António Dias Lourenço. O guarda da GNR, Jorge Alves, foi definitivamente ganho para nos ajudar na fuga, ainda que com muitas hesitações e receios e na condição de o colocarmos no estrangeiro após a fuga, assim como duma certa quantia em dinheiro para sustentar os familiares, enquanto estes não se juntassem a ele.
Como a próxima "diligência" em Peniche da companhia da GNR a que o Jorge Alves pertencia estava marcada para o mês de Janeiro de 1960, tudo foi combinado, por proposta dele, para o dia 10. Subitamente, por razões não explicadas, já no dia 1, ele antecipou a acção para o dia 3 de Janeiro.

De fora deveriam chegar ate nos dois sinais distintos, confirmando que no exterior tudo estava preparado para a nossa retirada em segurança, a partir de locais da vila de Peniche previamente combinados, para a recolha dos grupos por nós definidos.
Um dos sinais, o primeiro, deveria ser-nos dado através das visitas, logo a seguir ao almoço. Este sinal, por dificuldades surgidas nos encontros no exterior, falhou, não foi dado.
O segundo sinal consistia no aparecimento no largo fronteiro as celas do lado Norte, de um carro com a tampa dos porta-bagagens levantado, o qual, após percorrer alguns metros bem à vista de nós, parava e o seu condutor saí calmamente do automóvel e fechava a tampa do porta-bagagens.
Este sinal concretizou-se.  À hora combinada, o carro, conduzido pelo militante comunista e conhecido actor teatral Rogério Paulo, realizou com perfeição esta manobra.
No interior da cadeia,  ficámos algo perturbados com a falta do primeiro sinal. Estabeleceu-se alguma discussão sobre se a fuga deveria ir para diante com tais condições. Houve quem levantasse dúvidas, e eu fui um deles, quanto a lançarmo-nos numa ação de tão grande responsabilidade face à ausência do sinal de avançar vindo do exterior. Foi decidido fazer-se uma rápida auscultação entre os camaradas envolvidos na fuga, tendo¬se optado maioritariamente pela decisão de ir para a frente.
Quando surgiu o segundo sinal já tudo estava decidido quanto à concretização da fuga.

A partir desse momento desencadeou-se toda a preparação dos preparativos "irreversíveis" — rasgar lençóis em tiras e uni-los com nos sólidos previamente estudados, fazendo ainda mais dois nós em cada tira de modo a reforçar a "corda" assim formada e a facilitar a segurança da descida.
Os camaradas que ficaram responsáveis por esse trabalho utilizaram os seus próprios lençóis. Na hora H seriam todos juntos e entregues ao Francisco Miguel. que se encarregou da ligação das partes com uns nós especiais, a pescador, em que ele se especializara.
As ampolas com o clorofórmio para neutralizar o guarda prisional encontravam-se também já em nosso poder.
Após a hora do jantar, que foi assistido nesse dia pelo guarda Serrado, cerca das 19 horas, desencadeou-se a "operação". O sinal de partida foi dado, sem o saber, pelo próprio guarda ao apitar para nos levantarmos após a refeição.
No corredor e a saída do refeitório formou-se um "cortejo" de camaradas de modo a envolver o guarda, distraindo-o sobre qualquer sinal de nervosismo que eventualmente se manifestasse da nossa parte.


Deve lembrar-se que todos os presos desse 3.° piso estavam a par, de um modo geral, sobre o que se preparava. Todos foram informados e consultados previamente quanto à disposição ou interesse em participar na fuga, de tal modo que com alguma antecedência se soubesse quem ia fugir e quem ficava.
O critério que presidiu a esta selecção partiu do princípio de que quem fugia da cadeia era para continuar luta na clandestinidade, logo foram seleccionados todos os que estavam nessa disposição.
Assim, fugiram: Alvaro Cunhal, Jaime Serra, Joaquim Gomes, Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares,  Guilherme da Costa Carvalho, Rogério de Carvalho. José Carlos e Francisco Martins Rodrigues.
Ficaram na Cadeia, por opção própria ou por não se enquadrarem no critério atrás referido, Borges Coelho, Humberto Lopes, Manuel Andrade e António Rego. Estes, embora não fugindo, deram à execução da fuga todo o apoio que puderam.
O processamento da fuga foi muito rápido porque todos os passos estavam cronometrados com rigor e cada um sabia o que tinha a fazer, incluindo a ordem de saída.

No momento previsto e como estava combinado entre nós, o guarda Serrado sentiu cerrado à volta do pescoço um laço feito com uma toalha, tendo ficado imobilizado quase instantâneamente. Esta tarefa foi realizada pelo camarada Guilherme de Carvalho, que dela Ioi incumbido por ter uma constituição física adequada para o efeito. O clorofórmio foi aplicado de imediato e foi-lhe metida na boca a pega metálica utilizada habitualmente nos hospitais para segurar a língua de modo a evitar que o paciente fique asfixiado.
Como se esperava, o guarda nem “piou”, tendo sido metido em estado inconsciente numa das celas que ficou vazia. Havia certa preocupação dado o facto de termos sido prevenidos que o clorofórmio é mais difícil de atuar sobre indivíduos alcoólicos. O guarda Serrado era um desses. Felizmente que ao efeito do clorofórmio se juntou o efeito do susto de tal modo forte que, segundo soubemos depois, quando o foram libertar cheirava mal...
Os camaradas que ficavam recolheram às suas celas, tendo eles próprios fechado as suas portas. No refeitório, o nosso gira-discos ficou a tocar uma bonita sinfonia, a Patética de Tchaikóvski...
A segunda fase da operação desenrolou-se no exterior do bloco prisional sob a responsabilidade do guarda Jorge Alves. Como estava previsto, juntamente com o camarada Alvaro Cunhal, constituímos o primeiro grupo a percorrer, sob a capa do guarda Jorge Alves, a distância que nos separava duma horta existente num terreno subjacente à muralha da Fortaleza por onde íamos descer.
Tendo alcançado o torreão da fortaleza, tratámos de amarrar solidamente a uma fresta desse torreão uma ponta da "corda" de tiras de lençol por onde descemos.


A partir daí tudo foi fácil. Saltámos o último obstáculo, o muro exterior do fosso e encontrámo-nos de imediato a atravessar o largo do jogo da bola misturados com os muitos populares que vinham de assistir ao jogo de futebol, discutindo em voz alta o seu resultado. Chegámos assim ao local de encontro previamente marcado, onde nos esperava um camarada conhecido, o médico Orlando Lindim Ramos, ao volante do seu carro. Ali aguardámos a chegada dos outros camaradas fugitivos que, segundo o combinado, deveriam participar connosco na retirada, entre eles o Joaquim Gomes e o guarda Jorge Alves.
Na descida verificaram-se dois acidentes: com o Guilherme da Costa Carvalho, que se feriu na face ao cair de uma certa altura, e com o Pedro Soares, que também caiu, ainda dentro da Fortaleza, ao saltar para uma horta, tendo torcido um pé.

A parte final da fuga, assim como a retirada, não decorreram exatamente como estava previsto, por dificuldades resultantes do comportamento do guarda Jorge Alves nessa fase final. Assustado pelo facto de ter sido confrontado com o aparecimento de um número de fugitivos superior ao que provavelmente lhe haviam dito, entrou em pânico e ia deitando tudo a perder. Valeu, na oportunidade, a serenidade e determinação dos camaradas que se confrontaram com essa situação, particularmente do camarada Joaquim Gomes.
Por este facto, o carro conduzido por Lindim Ramos transportou menos dois fugitivos do que estava previsto (Carlos Costa e Pedro Soares) e o outro carro, conduzido pelo camarada Carlos Plácido de Sousa, teve de transportar oito pessoas — sete fugitivos mais o condutor. Valeu a circunstância de se tratar de um grande carro americano que transportou toda aquela gente sem dificuldades embora, por uma questão de segurança, dois deles fossem deitados de modo a não serem vistos do exterior.

A despeito daqueles pequenos acidentes, concluiu-se com pleno êxito uma das mais audaciosas e espetaculares fugas de toda a longa história do regime fascista. Ela constituiu para os salazaristas uma profunda derrota, na mesma medida em que constituiu para o PCP uma extraordinária vitória política, ao recuperar para a luta uma dezena de destacados dirigentes do partido, incluindo aquele que viria ser o seu secretário-geral, o camarada Álvaro Cunhal. A repercussão nacional e internacional foi enorme, constituindo, além do mais, uma grande humilhação para o regime.

Jaime Serra

analogia


O leitor já teve a oportunidade de estar a restaurar a chapa de um carro velho e por mais que a esteja a lixar estar sempre a aparecer ferrugem? É uma experiência do género desta.

fuga #3 1954

Quando se deu o fracasso da descoberta do túnel da sala 4, por onde se deviam evadir camaradas, tornou¬se claro para todos que o nosso plano de fuga coletiva estava prejudicado, pelo menos por algum tempo. Mas esse facto não afectou muito o ânimo de alguns camaradas que persistiam em encontrar um caminho para a liberdade e continuar a luta. Vários projetos individuais foram surgindo, entre eles o velho sonho de fugir do segredo.


Era a tentação de todos os presos que por lá passavam. E foram muitos nesse tempo. Quem não pensou em encontrar maneira de sair daquele redondo, de noite, descendo das muralhas para o mar e daí alcançar terra firme?!...
Não era, aliás, uma façanha inédita: já no passado alguém conseguira evadir-se pela furna, que tinha uma abertura para a parada, com a ajuda de uma pequena bateira. Por isso os carcereiros tinham reforçado a segurança naquela zona para evitar novas fugas.
Alguns de nós tínhamos passado pelo "segredo" longos períodos e por várias vezes. Nos muitos dias que ali vivemos tivemos ocasião de imaginar e estudar todas as várias possibilidades de evasão. Como também observámos os diversos obstáculos que podiam levar ao seu fracasso.

O "segredo" consistia nuns pequenos cubículos com uma única porta de madeira, grossa e reforçada com algumas cintas metálicas. Mantinham-se permanentemente fechadas, com fechaduras e ferragens exteriores. O chão era cimentado. A vigilância permanente era feita por um guarda prisional a partir de um posto a cerca de 50 metros de distância. Duas sentinelas da GNR, de ângulos diferentes, vigiavam-no com intermitências.
O portão exterior do redondo mantinha-se sempre aberto, a área bem iluminada e o guarda tinha a recomendação de manter a porta do "segredo" sob vigia. A ronda passava de duas em duas horas: batia com as chaves ou chamava e esperava que respondêssemos.
A porta só se abria nas horas das refeições — de manha, ao café, ao almoço e ao jantar. Nas horas de abertura de manhã e de fecho à noite íamos às muralhas, acompanhados do guarda fazer despejos para o mar.
Qualquer tentativa de evasão comportava grandes riscos e o seu êxito dependia, em grande medida, de muita audácia, muita coragem e determinação e um bom sentido organizativo para levar à prática um plano bem arquitetado. E também era preciso alguma sorte...

Foi naturalmente um pequeno número de pessoas que estudaram o plano de fuga do «segredo». Nesse grupo estava o Dias Lourenço, seu grande entusiasta e principal personagem. Acabou por ser ele a ir parar ao "segredo" e a pôr em pratica o plano. Por várias razões mas também porque era, entre todos, o que melhor nadava. O grande perigo estava no mar...


Para sair do "segredo" o único meio era abrir um postigo na porta, de tamanho suficiente para passar um corpo. Para isso era necessário uma boa faca com bico bem afiado... e tempo. O tempo nunca foi problema para um preso, e quanto a faca o Dias Lourenço lá arranjou uma boa faca de sapateiro que conseguiu fazer passar consigo quando ingressou no "segredo", tarefa nada fácil porque os que entravam eram despidos em pelota e as roupas e objectos pessoais pesquisados com minúcia.
Para descer das muralhas até ao mar era necessário uma corda. As três mantas que nos distribuíam, rasgadas em tiras, podiam servir de corda. Lembra-me de uma pequena dúvida que se levantou na discussão deste pormenor: do alto das muralhas até ao mar seriam cerca de 16 metros medidos o que obrigava a uma corda resistente.
O outro risco era poder ser visto pelo guarda da porta em frente, ao sair pelo postigo. Também me recordo que foi lembrada a conveniência de aproveitar, se possível, o turno do guarda Samuel, um velhote inofensivo que às vezes até se metia nos copos.
Tudo foi previsto, inclusive o plano das marés de modo a fazer coincidir a fuga com uma baixa-mar...
Estávamos em tempo de repressão e não foi difícil Dias Lourenço apanhar inesperadamente alguns dias de castigo no "segredo". Não lhe foi imediatamente possível levar à prática a saída e ao fim de dez dias regressou à caserna coletiva.
Ao chegar disse-nos que o postigo estava praticamente cortado. Pressionando a faca com a mão conseguira fazer penetrar o bico até ao exterior. O postigo ficara preso apenas em poucos locais. Os cortes finais seriam dados na noite da fuga e colocaria o postigo no mesmo lugar para que o vigia, vendo o buraco na porta, não desse o alarme. Só na primeira contagem às cinco da manha a fuga seria descoberta.
Tudo em ordem, só faltava fazer os restantes preparativos...

Naquele dia nenhum de nós pensava que a intervenção do guarda Pôpa viesse apressar e colaborar nos planos da fuga... As circunstâncias contribuíram para muita gente pensar (mesmo os carcereiros) que aquela ida para o "segredo" foi provocada por nós ou pelo Dias Lourenço. Mas a verdade não é essa. De fato esperava-se o momento oportuno. E o momento oportuno foi o guarda Pôpa quem o precipitou.
O Dias Lourenço escrevia nesse dia urna mensagem para o Partido (era ele quem nessa altura tinha essa tarefa). Estava sentado na cama a um canto escondido da sala. O guarda Pôpa estava de serviço à nossa caserna e passava de um lado para outro, em frente das janelas, como um cão perdigueiro â procura da caça. Viu o Antonio recolhido no canto a escrever, desconfiou e decidiu atacar. Abriu repentinamente a porta e entrou na caserna. O Dias Lourenço dobrou negligentemente o papel e meteu-o na sua mala. Daí a pouco o Pôpa foi à mala, abriu a tampa, tirou o papel e ia desdobrá-lo para ler. O António, de surpresa, tirou-lho das mãos e meteu-o na boca. Envolveram-se em luta. Enquanto engolia o papel foi levado aos empurrões para fora da sala.
Lembra-me que naquela confusão o Dias Lourenço ainda teve tempo para me lançar um olhar significativo que eu interpretei como indicação de que ia aproveitar a oportunidade.

O tempo que se seguiu à sua ida para o "segredo" foi para todos nós tempo de preocupação e grande ansiedade. Esperávamos a todo o momento, de dia e de noite, uma qualquer indicação do que se teria passado. Teria conseguido sair pelo postigo? Como teria iludido a vigilância do guarda? Como teria conseguido a descida da nitiralha para o mar?
Era todo um mundo de interrogações que nos preocupavam. Sempre que um guarda se aproximava ou abria a porta da sala esperávamos poder observar qualquer indício que fosse uma resposta à nossa ansiedade.

O tempo de espera não foi muito.
Numa manhã seguinte dois guardas entraram na caserna e dirigiram-se para a minha cama. Pressenti imediatamente que tudo se tinha consumado — para o bem ou para o mal.
— Onde estão as coisas do senhor Dias Lourenço? — perguntaram, sem se dirigir particularmente a ninguém.
Todos os guardas sabiam onde ficava a cama do Dias Lourenço, por isso se encaminharam para o nosso canto. Eu e o Dias Lourenço sempre tivemos as nossas camas ao lado uma da outra, e as coisas mais importantes do Dias Lourenço já eu as tinha misturado com as minhas.
Os guardas pegaram em tudo que lhes foi indicado e foram levando. Insistimos para nos explicarem porquê. Não nos deram resposta. Mais tarde conseguimos saber que tinha havido fuga, mas não sabíamos se ela se tinha ou não consumado.
A nossa ansiedade aumentou quando, um ou dois dias depois, os carcereiros fizeram correr a notícia que o Dias Lourenço devia ter-se afogado porque algumas das suas roupas tinham sido recolhidas no mar.
Ficámos assim a saber que a fuga tinha sido um facto; que o Dias Lourenço não tinha sido preso à saída do "segredo"; e que tinha conseguido chegar ao mar. O aparecimento das roupas não nos preocupou muito: tínhamos uma explicação para isso. A nossa principal preocupação era saber se tinha conseguido chegar ao seu destino...

Joaquim Campino


Mais tarde soube-se que naquela noite, em que Dias Lourenço decidiu dar início à fase final e mais difícil da fuga, os dados estavam lançados para o certo ou para o torto.
Com as mantas fez a corda para descer para o mar e com a faca procedeu ao corte da parte da madeira que ainda sustentava o quadrado que abrira na porta a medida do seu corpo. Com todo o cuidado retirou o quadrado da madeira voltando a colocá-lo para escapar à observação da próxima ronda.


Ao descer as rochas, observou que o mar estava mais agitado do que havia previsto, com grande rebentação e ondas de respeito. Para complicar as coisas, a corda havia ficado mais curta do que a distancia a descer e por tudo isto entrou na água de forma descontrolada, tendo-se ferido e perdido logo, levada pelas ondas, a roupa que que tinha presa à cabeça.

Nadou durante bastante tempo tendo acabado por ir parar não à pequena praia que fica próximo da entrada da fortaleza, como pretendia, mas sim a uma zona bastante afastada, nas proximidades do local onde então funcionava a lota do peixe e onde havia a essa hora bastante movimento de pescadores e negociantes de peixe que o transportavam em camionetas de venda.

Foi aos tripulantes duma dessas camionetas que Dias Lourenço se dirigiu, pedindo boleia quando estes se aprontavam para partir com o peixe que haviam comprado.
Pediu boleia para o Bombarral depois de informado que era para esta terra que eles se dirigiam. Perante o seu aspeto, com barba de 15 dias e encharcado até aos ossos a resposta foi uma recusa terminante com o argumento de que excedia a tripulação de sete homens e que teriam de passar pelo controlo da polícia de trânsito à saída de Peniche.
Face a tal situação Dias Lourenço resolveu jogar tudo por tudo. Disse quem era, um preso político que acabava de se evadir da fortaleza e que se não lhe dessem boleia acabaria por voltar a ser preso. Perante tal dilema, revelando um grande sentimento antifascista a tripulação da camioneta, após uma rápida conferência entre eles, acederam ao seu pedido transportando-o, escondido entre eles, até ao Bombarral onde encontrou apoio numa casa de camaradas que já conhecia.

 Jaime Serra

ipsis verbis

Há um apanhado de coisas pensadas antes de serem escritas (ainda se faz disso em Portugal) que dá pelo nome de Expresso. Deixo algumas ideias publicadas no último número (2 de fevereiro):


Talvez parar para pensar melhor no assunto não fosse má ideia. Mas aí é que bate o ponto: por definição, a democracia viral não tem tempo para pensar, é instantânea e imediatamente contagiante, como todos os vírus. E disso depende a sua eficácia. Acrescente-se-lhe o exército de repórteres-justiceiros que, de telemóvel em punho e Facebook à espera, estão sempre alerta para que nada lhes escape, e temos, em todo o seu esplendor, o processo de formação das opiniões públicas nos tempos de hoje. Suicidariamente, os jornalistas e as instituições movem-se por reação e não por reflexo. Não param também para pensar se um determinado acontecimento, sufragado pelo "efeito viral", tem ou não mérito em si mesmo: a partir do momento em que existe, a notícia passa a ser a sua própria existência e há que reagir.

Miguel Sousa Tavares


Sem explicar os seus fundamentos objetivos, o governo permitiu a previsível fuga do PS, que está convicto de que, politicamente, ganhará muito com isso. Silencioso quanto às verdadeiras razões desta reforma, o governo permitiu, assim, que a discussão se deslocasse para o plano ideológico, quando se trata apenas de falta de dinheiro.


Medina Carreira

Toda esta novela de António Costa, toda esta indecisão, toda esta falta de clareza, obrigam-nos a pensar se ele tem o que o próximo primeiro-ministro precisa de ter. Em bom português: tomates.

Daniel Oliveira


No Canadá, os governos foram forçados a atuar, porque a opinião pública tomou consciência de que o aumento dos défices significava mais impostos no futuro. Por cá, nenhum governo será penalizado por "fazer obra".

Nicolau Santos


Boa parte da classe política, cada vez mais cega e pindérica, não percebe que esta visão tem um preço: também os eleitores passaram a ver os políticos, não como pessoas dedicadas à comunidade, mas como alguém que se serve a si próprio. O facto de terem (cada vez menos) votos não significa respeito. O respeito, caros eleitos, é algo que a maioria de vós já há muito perdeu. Com ele foi-se a coragem que vos falta para quase tudo o que seja ir contra a corrente: de aprovar salários decentes para os políticos a defender sequer o direito que têm à privacidade.
São mal tratados.
Mas põem-se muito a jeito.


Henrique Monteiro

e porque há dois dias foi domingo

A probabilidade da vida existir sem Deus é a mesma de um camião carregado de farinha, ovo, leite, manteiga e açúcar capotar e explodir e tu tirares um bolo lá de dentro.

fuga #2 1953

Alcançar a liberdade e voltar à luta era uma das maiores aspirações dos presos da caserna 5, onde me encontrava. A recordação de que fora dali que se evadiram os camaradas Jaime Serra e Francisco Miguel exercia sobre todos nós uma contagiante confiança de que também nós seríamos capazes de encontrar uma saída para a liberdade. Não necessariamente a mesma que os camaradas encontraram. Estava ainda muito fresco na memória dos carcereiros o processo utilizado — grades serradas, subir para o telhado e dali descer as muralhas para as rochas até chegar ao cais.


Assistíamos à rotina de todos os dias — os guardas nas rondas batiam com a chave nas grades da janela. Pelo som mais ou menos metálico podiam aperceber-se se alguma delas estava serrada ou começada a serrar.
Sabíamos que naquela caserna já em tempos se havia tentado a fuga furando a parede para o exterior. Fatos pendurados em cabides ao longo das paredes escondiam o buraco e as pedras e a caliça retiradas do buraco eram disfarçadas em embrulhos e colocadas nas prateleiras. A tentativa fora descoberta e agora os guardas sempre que entravam na caserna percorriam com o olhar as paredes e não permitiam um ou outro papel a cobri-las.
—Só há um caminho para sair daqui! — disse alguém certo dia.
—Qual?...
—O chão!...
A princípio a ideia não foi levada a sério. O chão era cimentado. Como era possível abrir caminho através do cimento?... E não apenas o cimento: havia também todas as possibilidades de uma vez furado o cimento se encontrar rocha. Onde encontrar os instrumentos para abrir caminho através da rocha?! Como dissimular o buraco durante as rusgas dos guardas? Como fazer desaparecer a terra ou as pedras que iríamos tirar do buraco?...
Cada um ficou a ruminar em todas estas dificuldades e aos poucos, à medida que os dias e as semanas iam passando, íamo-nos familiarizando com o projecto e cada um ia encontrando soluções possíveis para as dificuldades.
A capa do cimento podia não ser muito grossa... Mesmo que a caserna assentasse sobre rocha esta não é lisa e podia até haver urna galeria que nos levasse ao exterior, etc., etc.
—O mais difícil seria furar a muralha! — dizia um.
— As paredes da muralha não são feitas em cimento! — dizia o Lobão Vital, com a sua autoridade de arquiteto. Naquele tempo não havia cimento e as pedras eram presas com cal. É fácil desprender, pedra a pedra.
Podemos fazer entrar alguns escopros entalados nas tábuas de unia mala — sugeriu outro.
—O buraco pode ser feito debaixo de uma cama para não ser visto pelo guarda nas rondas!
—Não é boa solução — discordava alguém. — O mais seguro é fazer uma tampa de cimento!
— E o cimento? Só se pedíssemos ao Afonso (guarda de confiança)! — Não é arriscado?
Era um mundo de interrogações para o que foi necessário encontrar resposta.

A verdade é que passadas algumas semanas começámos a abrir um buraco debaixo da cama do Gabriel.
Foi montada vigilância na janela para suspender o trabalho logo que o guarda se aproximasse. Havia escopros e martelos. Foi marcado no chão um quadrado de pouco mais de 50 centímetros e começámos a abrir um poço. Quando a placa estava quase cortada foi feita uma tampa com o cimento que o Afonso nos trouxe da vila. A ferragem de uma cama serviu de estrutura metálica. Sempre que o trabalho era interrompido pela chegada da ronda a tampa era colocada a fechar o buraco. As fendas eram disfarçadas com miolo de pão amassado com pó de cimento.
Quando furámos o cimento alimentámos a esperança de avançar depressa porque apareceu terra. Mas a um metro de profundidade a rocha apareceu. Apesar disso ninguém falou em desistir.
Dia após dia íamos partindo pedra e retirando terra. Aos poucos era escoada no latão do lixo que todos os dias despejávamos ao mar, de cima das muralhas.


Um dia aconteceu o que ninguém tinha previsto.
Estávamos na hora da limpeza. Dois camaradas foram despejar o lixo acompanhados do guarda. De cima da muralha despejaram o latão corno era costume. Por cima deles, debruçado numa das ameias, a sentinela da Guarda Republicana observava e viu cair pedras à mistura com os papéis e outro lixo. O barulho de alguns pedregulhos ao cair na água chamou a sua atenção. Lá de cima gritou ao guarda:
Estão a despejar pedras!... Está a ouvir, senhor guarda?!
O guarda fingiu não ouvir mas os nossos camaradas vieram, alarmados, dar a notícia.
Precisávamos tomar medidas imediatas. O guarda foi¬se embora mas passado pouco tempo vimos chegar vários guardas que passaram uma revista à caserna batendo nas paredes.
Quando saíram tomámos uma iniciativa arriscada. Pedimos através do Gabriel, nosso chefe de caserna, que nos permitissem caiar as paredes.
Há muito que vínhamos pedindo para nos caiarem a caserna. Respondiam que a caiássemos nós. Os carcereiros ficaram agora surpreendidos e aceitaram imediatamente. Forneceram a cal e os pincéis e mandaram-nos pôr imediatamente as camas na rua.
Tínhamos calculado isso mesmo. À medida que íamos pondo as camas cá fora íamos também vasculhando o tecto com grandes vassouras. O pó branco que se desprendia das paredes ia caindo no chão cobrindo-o com unia camada branca uniforme. A mancha quadrada do cimento novo ficou assim disfarçada. Os guardas inspecionaram todos os cantos da caserna, acompanhados do chefe Vítor Ramos e do adjunto Bastos mas nada encontraram de suspeito. Ao fim do dia mandaram pôr as camas para dentro.

Alguns dias depois mandaram-nos pôr de novo as camas na rua e deram ordem para lavarmos a caserna. Enquanto colocávamos as camas na rua carregávamos os baldes e os esfregões para dentro e começámos a baldear.
Com toda a naturalidade um de nós encarregou-se de "defender" o quadrado, mantendo sempre em cima da mancha um balde e o esfregão. Mais uma vez houve revista com vários guardas e os seus chefes. Depois de darem por terminada a revista, o Afonso, que tinha ficado de serviço, entrou na caserna e perguntou a rir:
— Como é que fizeram o buraco que ninguém o vê?
Tinha os pés precisamente em cima dele.
—E quem é que te disse que há buraco? — retorqui-lhe eu.
—Então para que foi o cimento?
Como não lhe respondemos saiu a rir e não insistiu.
Passaram-se mais alguns dias e veio a ordem para mudarmos para a caserna 4. O buraco lá ficou tapado. A tampa ficou apoiada sobre uma armação de madeira.
Dali em diante a caserna 5 não recebeu mais nenhum preso. Foi ali instalado o refeitório da GNR.

A interrupção forçada da tentativa de fuga na sala 5 em vez de nos desanimar teve o efeito de despertar em todos nós uma ânsia incontida de alcançar a liberdade pelas nossas próprias mãos.
Ao entrarmos na caserna 4 íamos ainda sob a influência do plano que arquitetámos: fazer um túnel subterrâneo que nos levasse às muralhas. Reparámos, logo que entrámos, que o chão não era de cimento, mas em soalho. Era uma circunstância favorável. Na primeira oportunidade despregámos uma tábua e vimos com satisfação que por debaixo era terra solta sem vestígios de rocha.
Passados alguns dias um grupo restrito começou a estudar o plano. A caserna tinha bastantes pessoas e nem todos estariam interessados na fuga.
 Estariam, no entanto, todos dispostos a arriscar-se a ser coniventes? Não era possível manter em total segredo os preparativos de urna fuga numa caserna com tanta geme. Sobretudo uma fuga que exigia um trabalho coletivo.
A primeira tarefa foi, portanto, preparar as pessoas e ganhá-las para isso.
Fizemos uma discussão pormenorizada com todos os presos da caserna e todos estiveram de acordo em se iniciar os preparativos de fuga. Foi aceite voluntariamente o seguinte compromisso: ninguém falaria no assunto à família nas visitas. Para maior segurança alguém lembrou, e foi acordado, que a própria correspondência pessoal devia ser lida por um grupo escolhido para evitar qualquer referência, mesmo involuntária, que levasse os carcereiros (que censuravam as cartas) a aperceberem-se de que algo anormal se podia estar a passar. Um simples entusiasmo descontrolado podia ser perigoso. Que enquanto durassem os preparativos da fuga ninguém iria sozinho tratar qualquer assunto ao gabinete do chefe dos guardas ou ao diretor. Que no caso de fracasso todos se comprometiam a não fazer declarações fosse contra quem fosse, quer aos carcereiros, quer à PIDE, ou se negariam a falar ou, como limite, declaravam desconhecer quaisquer preparativos de fuga pessoal ou coletiva. A ligação com o exterior sobre este assunto seria apenas da responsabilidade do organismo que passaria a dirigir os preparativos da fuga.
Quando esta fase foi dada por concluída demos início ao trabalho.
Éramos dez os que estávamos preparados para fugir. A maioria era funcionários politicos do PCP, mas havia também não funcionários, entre os quais alguns camaradas chegados do Tarrafal, como o Fernando Vicente e o João Faria Borda.

 Naquele tempo a caserna 4 não tinha guarda permanente em frente das janelas. A vigilância era feita de vez em quando e havia, além disso, as rondas regulares e as formaturas de manhã e à noite, antes do silêncio. Estudadas todas as condições concluiu-se que a noite era a melhor altura de trabalhar na fuga. Mas para isso era indispensável montar um serviço de vigilância ao exterior a partir da janela, para dar o alarme, e de forma a que quando o guarda acendesse a luz e abrisse a porta tudo e todos estivessem em ordem e dentro das suas camas para serem contados.
Fizeram-se testes e concluiu-se que o tempo mínimo gasto pelo guarda, desde ser visto ate chegar à caserna, abrir a luz e a porta era de 23 segundos!... Isto em relação ao guarda mais rápido, o Serrado. Era este o tempo que tinha de servir de base para todos os cálculos.
Entre os camaradas que se dispunham a participar nos preparativos da fuga foram criados vários grupos de trabalho: um grupo que se encarregaria de fazer a vigilância do exterior. Outro grupo que trabalharia na perfuração do túnel. Outro ainda que se encarregaria de espalhar a terra saída do túnel por debaixo do sobrado. Finalmente, um grupo coordenador que tinha a responsabilidade de se manter junto da tampa aberta e daí dirigir todas as operações, desde a mudança dos turnos até ao receber o alarme, dar ordem de saída do túnel e fechar a tampa.

Todos fizemos um período de treino e adaptação às nossas tarefas, a começar pelos vigilantes do exterior que tiveram de estudar o local exato onde se deviam colocar na janela, de forma a encobrirem-se dentro da sombra da ombreira e não se deixarem ver, nem pelo guarda, quando assumisse à esquina, nem pelo GNR que fazia a vigilância nas ameias das muralhas da Fortaleza, mesmo por cima da nossa caserna
Uma corda seria estendida por debaixo das camas ligando o vigilante da janela aos camaradas que estavam junto da tampa. Ao avistar o guarda, o vigilante daria um esticão, sinal que era recebido na boca do túnel por alguém que mantinha permanentemente a corda esticada na mão. Recebido o alarme o camarada transmitia o alarme imediatamente com outro puxão noutra corda que estava presa a um pé do "mineiro". Este saía rápido, soltaria a corda do pé (presa com uma liga elástica) e metia-se na cama. Os camaradas de serviço junto da tampa teriam de ter a corda recolhida, a tampa fechada, e tudo em boa ordem nos 23 segundos.
Era assim que tudo funcionaria dali em diante.

A tampa foi finalmente aberta no sobrado entre as nossas duas camas — a minha e a do Dias Lourenço, que foi o grande dinamizador deste projeto. Ficámos também a fazer parte do grupo coordenador da superfície. O trabalho mais difícil, e que requeria além de boas condições físicas, rapidez e muita coragem, era o de «mineiro». Foram seleccionados para essa tarefa, entre outros, o Severiano Falcão, o José Magro, o José Maria do Rosário, o Chico "Caniço" e o Borda. Outros camaradas colaborariam nos vários trabalhos de vigilância e arrumação de terras, como o Agostinho Saboga e o Alcino de Sousa.

Calculou-se que a distância entre o local onde ia começar o túnel e a muralha seria cerca de 10 metros. Isto iria trazer acrescidas dificuldades de realização que foi necessário ir, aos poucos, estudando e encontrando solução. Entre os presos da caserna havia o camarada José Alexandre, mineiro das Minas de S. Domingos. Foi ele que nos aconselhou a abrir o túnel com uma inclinação ascendente. Isso facilitava a remoção das terras e permitia uma mais rápida saída do túnel nos momentos de alarme. Também foi ele que nos ensinou a técnica mais segura para escorar o túnel. As terras eram muito soltas e havia o perigo de desmoronamento. E um desmoronamento seria a morte quase certa do camarada que estivesse lá dentro.
A madeira para as escoras veio das malas de cada um. Iam desaparecendo à medida que o túnel ia avançando. Quando o túnel atingiu 4/5 metros de comprimento começaram os problemas de ventilação para quem trabalhava lá dentro. Dificuldade agravada com a forma de iluminação: a chama da vela queimava muito oxigénio e agravava o problema da ventilação.
O Dias Lourenço propôs-se fazer um ventilador igual ao das pequenas forjas de serralheiro. Não havia chapa mas ele construiu-o de cartão forte. Quando o pôs a funcionar o cartão não aguentou. Mas este não foi o único fracasso. Para resolver o problema da luz também alguém sugeriu a montagem de iluminação eléctrica. Encontrámos forma de fizer entrar o fio e a lâmpada. Os mais entendidos em eletricidade encarregaram-se de fazer a instalação.
Na noite em que experimentámos a ligação à instalação da caserna como que suspendemos a respiração a aguardar o resultado. Foi um fracasso total. Um curto-circuito pôs toda a fortaleza às escuras e houve alarme geral.

Na visita que se seguiu os carcereiros não encontraram nada suspeito na nossa caserna. Mas, como medida de segurança, foi decidido suspender os trabalhos durante algum tempo, até porque também era necessário encontrar solução para os problemas de ventilação que tínhamos pela frente.
Tinham já passado os dias de incerteza. A vida prisional tinha voltado à normalidade, agora que tudo fazíamos para que nada viesse a perturbar o nosso plano de fuga. Foi um tempo de espera e de reflexão depois do incidente elétrico que quase deitara tudo a perder. Estávamos agora novamente em condições de retomar o trabalho, mas primeiro que tudo era preciso resolver o problema da ventilação sem a qual era difícil prolongar o túnel.
Foi o Agostinho Saboga, da Marinha Grande, quem nos deu a chave da solução propondo a construção de um fole idêntico aos usados pelos vidreiros. Para isso precisávamos de cabedal, ou pelo menos de uma porção de carneira fina. Ele próprio fazia o fole, mas não queria arriscar-se com outro material que não resultaria. Tínhamos presente o falhanço do ventilador do Dias Lourenço exatamente por falta de material capaz.
Foi então que surge a decisão de se passar a fazer de encadernador. A minha companheira e a companheira do Gabriel, a Encarnação, eram as únicas entre as visitas que sabiam dos preparativos da fuga. A minha companheira era quem cá fora se incumbia de nos resolver as dificuldades. As ligações da organização prisional com o Partido faziam-se por seu intermédio. Com a nossa ajuda nas visitas, com a ajuda dos camaradas cá fora e com muita imaginação da sua parte as coisas iam entrando e saindo. Para algum assunto mais trabalhoso a Encarnação participava e nunca virou a cara.
Pedi autorização para receber cartão, papel, fio e carneira para encadernar uns livros para o meu filho. Foram de Salgari os primeiros livros que lhe encadernei. Depois encadernei A Selva e fiz uma pasta de secretária para oferecer à minha companheira. Os livros profissionais que comprei para aprender o "ofício" também me ensinaram que com vários ácidos se podia desenhar na carneira. Que o óxido de zinco faz cinzento, que o cloro faz castanho, etc., etc.. Pedi para me facultarem a entrada de vários desses produtos e expliquei para quê.
Os carcereiros iam-me vendo trabalhar e iam cedendo, talvez na secreta esperança de que "me deixasse de políticas" corno eles aconselhavam a tantos. Entretanto a carneira ia sobrando e o Saboga ia fazendo o fole. Quando deu o trabalho por terminado fizemos a experiência e tivemos outra desilusão; o ar insuflado pelo fole não chegava ao fundo do túnel. Sabíamos que havia falta de oxigénio porque a chama que lá acendíamos se apagava passado pouco tempo. Os camaradas corriam perigo e naquelas condições não era possível continuar. Era indispensável fazer entrar um tubo que, aplicado ao fole, levasse o ar até ao fundo do túnel.
Foi talvez esta a tarefa mais difícil que foi posta à minha companheira para ela resolver. Foi à Pollux, comprou dez metros de tubo de plástico maleável e fez o mesmo que já tinha feito para introduzir o fio eléctrico — enrolou-o muito bem no fundo de um tacho e encheu¬o de arroz doce. Depois decorou-o a preceito como se faz nos dias festivos. Só que uns metros de fio eléctrico fazem pouco volume enquanto o tubo de plástico fazia um volume maior. Por isso na visita as nossas famílias apareceram com um tacho tão grande que dava nas vistas...
— Hoje é dia de festa lá em casa. Trazemos arroz doce para todos!... Já pedimos autorização!...
Trazia à mistura também mais algumas guloseimas, mas era apenas para servir de cenário. Foi um risco calculado que resultou bem.
A visita acabou. Viemos para a caserna e foram minutos de martírio até sermos chamados para ir buscar as coisas. Por nós e por elas. Lá fomos e lá veio o tacho com o tubo dentro.
E foi assim que retomámos os trabalhos de perfuração. A solução do fole resultou inteiramente e agora a chama não se apagava.
Entusiasmado com o êxito do tubo, um dia, o Dias Lourenço, numa visita, disse em segredo à minha companheira:
— E agora tens de cá meter um candeeiro!...
Não foi necessário. Bastou trazer um frasco com doce, cuja configuração da boca permitiu adaptá-lo a candeeiro. Fez-se um furo na tampa, meteu-se-lhe uma torcida feita de algodão e o combustível foi o petróleo que havia na caserna, porque naquele tempo ainda era permitido cozinhar e o lume usado eram os antigos fogareiros a petróleo.
O trabalho foi retomado. O túnel atingiu dez metros sem grandes novidades, mas a muralha não aparecia. Cada vez era mais difícil cumprir os 23 segundos nos alarmes.
A saída fazia-se em corrida de coelho, mas recuando porque a largura e altura do túnel não permitia virar o corpo. Para tornar a saída mais rápida alguém lembrou molhar o chão do túnel. A terra era barro e molhado permitia um melhor deslize na descida quando era necessário sair rápido.


Estávamos perto do Natal de 1953 quando se atingiu a muralha. Há mais de três meses que tínhamos iniciado o túnel. Foi um momento de alegria. Agora era preciso a cabeça fria para a parte final. O túnel tinha precisamente 12 metros e na posição em que os camaradas trabalhavam não era possível atacar a muralha. Segundo os camaradas que trabalhavam no túnel era indispensável abrir no fim do túnel uma plataforma onde fosse possível trabalhar sentado e foi o que decidimos fazer. Entretanto o Natal chegou e decidimos suspender os trabalhos e fazer um Natal festivo e calmo, naturalmente cheios de confiança.
Estávamos atarefados a preparar a ceia da véspera, e quando o Faria Borda se esmerava a preparar os seus petiscos o guarda abriu a porta e disse:
— Os senhores Faria Borda, Fernando Vicente e Joaquim Casquinha preparem as suas coisas para saírem em liberdade!
Foi um corrupio de abraços. Ao fim de 18 anos de prisão quase todos cumpridos no campo de concentração do Tarrafal, os nossos camaradas iam finalmente conhecer a liberdade.
Tivemos nesse ano um Natal duplamente festivo: o nosso projeto caminhava de vento em popa e os três camaradas marinheiros, principais personagens do heróico levantamento da marinha de guerra portuguesa contra o fascismo em 1936 tinham saído em liberdade.
 Qualquer dos três camaradas conhecia em pormenor Os nossos planos de fuga e estava a colaborar activamente nos trabalhos. Mas numa rápida apreciação da situação concluímos que a sua saída não alterava em nada Os nossos planos. A confiança nos camaradas era total. Não havia razão para qualquer preocupação.
Os trabalhos iriam continuar logo a seguir aos festejos do Natal e desta vez com a colaboração de um novo camarada que entretanto acabava de chegar à nossa caserna — o camarada Carlos Pinhão, que imediatamente se integrou no grupo de trabalho dos vigilantes.

Estávamos em Janeiro. Era uma noite de luar, aquele nosso conhecido luar de Janeiro que torna as noites luminosas. Uma aragem fresca soprava do lado do mar e quando assim era ouviam-se mais distintamente as vagas contra as muralhas, e a ondulação invadia com mais força as cavernas subterrâneas da Fortaleza, percorrendo-as, fazendo bater as pedras soltas contra o fundo rochoso. Durante os anos que duraram a nossa prisão tínhamo-nos familiarizado com este som marítimo nas noites de maior invernia. Da mesma forma que nos era familiar a ronca do farol do Cabo Carvoeiro avisando a navegação nos dias e nas noites de nevoeiro.
Mas eram estas noites de mar batido as melhores noites que tínhamos para trabalhar dentro do túnel, agora que estávamos na derradeira fase de atravessar a muralha, arrancando-lhe pedra a pedra, até encontrar do lado de lá a liberdade que procurávamos.
No pleno silêncio das noites calmas qualquer ruído suspeito podia alertar a sentinela da GNR que se deslocava por cima da nossa caserna. O seu alerta ouvia-se de vez em quando e repercutira-se depois por todos os outros postos de vigia, por cima das ameias, à volta da Fortaleza.


Naquela noite contávamos com o barulho vindo do mar e com o som das pedras a bater umas contra as outras nos fundos da Fortaleza para abafar os ruídos metálicos das ferramentas que tínhamos começado a usar para arrancar as pedras das muralhas. Por isso se trabalhava com absoluta confiança e longe de pensar que o perigo nos espreitava.

Passava da meia-noite. Pelas nossas contas não tardava que o guarda viesse passar a ronda habitual.
De vigia à janela estava naquele turno o camarada Carlos Pinhão. Junto da tampa estávamos eu, o Dias Lourenço e o Gabriel. Como de costume havia vários camaradas bem acordados.
Não me recordo já de quem estava a trabalhar dentro do túnel. Mas lembro-me ainda bem (como de um mau pesadelo) do momento em que recebi do Carlos um esticão de alarme, seguido de outros pequenos esticões indefinidos. O alarme foi imediatamente transmitido para dentro do túnel. O camarada saiu e foi meter-se na sua cama. A tampa foi fechada como de costume. Passaram-se alguns segundos para além do previsto sem o guarda aparecer. Por fim ouvimos a sentinela gritar lá de cima:
— O que é que estes gajos estão a fazer em pé a estas horas?!...
Concluímos que falava para o guarda. Foi um momento de grande surpresa e de expectativa. A sentinela da GNR tinha avistado o Carlos Pinhão à janela e deu o alarme.
Tomámos rapidamente algumas medidas: quando finalmente o guarda Serrado acendeu a luz e abriu a porta pedimos que chamasse urgentemente o enfermeiro porque tínhamos um camarada bastante doente com urna cólica. Olhou-nos incrédulo mas viu o Guilherme de Carvalho na cama a torcer-se com dores e uns camaradas a acender o lume para aquecer a água e outros com um saco na mão para lhe aplicar sobre a dor.
Acabou, por nossa insistência, por ir chamar o enfermeiro. Entretanto vários camaradas se levantaram e todos esperávamos o enfermeiro "alarmados com o estado de saúde do camarada...".
Veio o enfermeiro e meio desconfiado viu o "doente". Para tornar mais verídica a "doença" o Guilherme tinha suportado sobre os rins um saco tão quente que a pele estava a empolar. Mesmo assim ficámos convencidos de que, quer o enfermeiro, quer o guarda, não tinham "comido" a explicação...
Quando saíram e voltaram a apagar a luz decidimos jogar tudo por tudo; montámos de novo um dispositivo de vigilância e metemos dentro do túnel tudo quanto nos podia denunciar numa busca à caserna: o fole, o tubo, o fio eléctrico que tinha servido para a experiência falhada, o candeeiro, toda a roupa suja usada nas escavações e até o rodo que servia para espalhar a terra por debaixo do sobrado. Depois tapámos com terra a boca do túnel até ao nível da tampa e fechámo-la o melhor possível. Só nos restava esperar pelos acontecimentos que se haviam de seguir.

Entretanto o Carlos Pinhão foi-nos contando o que se tinha passado com ele: viu o guarda aparecer na esquina e deu o alarme. Mas inexplicavelmente o Serrado em vez de vir em direcção à caserna seguiu em frente para o lado do mar. Para não o perder de vista avançou um passo e debruçou-se mais na janela por detrás dos vidros. Devia ter sido nesse movimento que ele ultrapassou a zona escura de segurança e foi visto de cima pela sentinela. Ficou sempre por entender o comportamento do guarda Serrado, mas é muito possível que aquele luminoso luar de Janeiro, com que não contávamos, nos tivesse traído, evadindo a zona escura demarcada e que também o guarda Serrado tivesse avistado a silhueta do Carlos. Pode ter querido enganar o Carlos dando uma volta maior.
No dia seguinte, depois da alvorada, foi servido o café com toda a normalidade. Passado pouco tempo um guarda veio dizer-nos para pormos as camas na rua.
—É para lavarmos a caserna? — perguntámos.
—Depois se verá! — respondeu misteriosamente o guarda.
Pusemos as camas na rua como era habitual para as limpezas, mas logo a seguir chegou o chefe dos guardas. Vítor Ramos, com o ajudante Bastos e mais um grupo de guardas. Esperámos com o coração oprimido o resultado da busca. Alguns de nós disfarçávamos o nosso nervosismo brincando com uma bola, mas os nossos sentidos estavam todos virados para o que se estaria a passar lá dentro.
Daí a pouco o Bastos sai e regressa com um martelo e uma picareta. Olhámos uns para os outros preocupados. Tudo parecia agravar-se...
A busca foi demorada mas em certo momento sentimos que tudo estava perdido: foi quando ouvimos o ruído de tábuas a serem levantadas. A terra que tínhamos tirado do túnel estava espalhada por debaixo do soalho. Em qualquer local onde fosse levantada uma tábua se veria terra solta e com sinais de ter sido mexida. E terra solta e fresca era sinal de buraco em qualquer sítio: era só questão de procurar.
E foi o que aconteceu. Não tardou que ouvíssemos um certo sussurro e urna agitada movimentação. Estava tudo descoberto!...
A partir dali foi apenas necessário acalmar os desânimos e preparar as pessoas para o embate com os carcereiros ou mesmo com a PIDE.
Pela tarde adiante fomos transferidos para a sala 3 — a nossa primeira caserna. Ficámos todos sem visitas e sem correspondência até apuramento de responsabilidades. Meteu inquérito da PIDE. Fomos um a um chamados a depor. "Seriam castigados todos aqueles que não provassem a sua inocência." Como ninguém prestou qualquer declaração contra quem quer que fosse, o castigo foi coletivo — 30 dias de isolamento na caserna.

Joaquim Campino
Muitos dos comentários aos jornais online são grunhidos de criaturas infelizes que vivem à margem da sociedade, mas vi um aqui que me encheu as medidas:

Por Antonio Santos (não verificado) | 1 Fevereiro, 2013 - 12:09
Pois a melhor condenação é retirar o dinheirinho do BPI, é o que farei


Exatamente! Quem não gostou das declarações do presidente do banco não lhe financie o referido banco. Simples!
Agora exigir que o primeiro-ministro perca tempo com folclore e populismos de um partido com nome de claque de futebol é que se calhar não é o mais oportuno.

PS: Mas também há grunhidos.
Atualizei a lista de blogs penicheiros à direita, na qual incluí a catrefada deles que estão associados ao Peniche Online. As respostas ao questionário sobre o "scouting" continuam válidas, mas antes de voltar a elas ainda vou explorar um tema que me parece ter moderado interesse.
As atualizações do blog vão continuar a ser parcas, mas não tem havido muito por onde se pegue.
Por agora é tudo, abraços.