plano para hoje #2 caminhos de ferro
O menino de hoje vem diretamente do Peniche na História e na Lenda e é o projeto da Estação de Caminhos de Ferro de Peniche.
Talvez devido a ser preciso um desvio no caminho para cá chegar, Peniche acabou por nunca assistir à chegada de nenhum comboio, o que não é habitual numa terra com esta dimensão e causa estranheza ao pessoal de outras terras quando lhes digo que não há comboio até Peniche.
a explicação devida
Várias pessoas ouviram uma explosão por volta do meio-dia e cada uma apresenta uma explicação diferente para o sucedido. Devo dizer que estão todas erradas. Vários especialistas chegaram à conclusão de que o que se ouviu foi uma destas coisas:
-Acidente devido a avaria nos semáforos;
-Eclusa do fosso a rebentar;
-Petróleo a brotar da superfície;
-Tozé Correia montado numa prancha a apanhar uma onda.
-Acidente devido a avaria nos semáforos;
-Eclusa do fosso a rebentar;
-Petróleo a brotar da superfície;
-Tozé Correia montado numa prancha a apanhar uma onda.
guia da contestação
Hoje em dia há cada vez mais informação proveniente de fontes não especializadas, sejam blogs, redes sociais ou a própria conversa com as pessoas, que se interessam muito mais por política do que antigamente.
Estas fontes são muitas vezes parciais e a informação é fornecida com o objetivo de contestar a política vigente, no entanto muitas vezes são usadas meias-palavras ou conceitos abstratos que não entendemos muito bem, por isso eu elaborei um pequeno guia para nos ajudar a perceber o significado de algumas expressões e até a possivelmente também nos envolvermos na contestação.
O povo
Há várias definições diferentes para esta expressão dependendo do contexto em que é usada:
-Eleitorado do PCP. O povo vai sair à rua dia 2 Março.
-Entidade imaginária que tem como código de conduta a Constituição. O povo conquistou o direito a...
-Grupo de pessoas que é objeto de malícia por parte de outro grupo de pessoas - eles. Zé Povinho também pode ser usado. Eles roubam e o povo/Zé Povinho é que paga a fatura.
Eles
Existem para usurpar e oprimir o povo, que lhes é dependente de alguma forma, sejam eles políticos, empresários ou banqueiros.
O eles é um conceito bastante flexível, no sentido de o meu pacato vizinho poder momentaneamente passar a pertencer aos eles desde que por algum motivo ascenda a uma posição pública relevante.
Portanto, eles são iguais ao povo, só que com poder.
Toda a gente já percebeu que...
O interlocutor apresenta uma opinião como se fosse um facto impessoal, para que tenha mais impacto e seja irrefutável.
Por exemplo: Toda a gente já percebeu que este governo tem de cair. Mesmo que discordemos desta afirmação, não podemos refutá-la, por um lado porque há a noção de uma força conjunta à qual não é possível fazer oposição e por outro a noção de não ser possível a discórdia devido a esta afirmação ser imposta sem deixar espaço para o contraditório.
Ninguém cala o povo
É remanescente dos tempos a seguir ao 25 de Abril, mas não tem sentido literal, pois toda a gente sabe que hoje pode falar à vontade por mais absurdo que seja o que tenha a dizer. Neste caso o povo é uma entidade una e temível, que não tem a capacidade de os aniquilar, mas com poder suficiente para limitar algumas ações que eles pretendam levar a cabo contra o povo.
O povo tem de sair à rua
É uma expressão bastante portuguesa, ao remeter para uma ação geral a realização da vontade do interlocutor. Assim sendo, supostamente tem o sentido do raramente ouvido temos de sair à rua mas com a diferença do autor da frase não ter a mínima intenção de sair à rua.
Chega ao extremo de tomar a forma de uma frase que deixei no blog há umas semanas: o povo português tem que se revoltar ir para a rua e defender os nossos direitos. Quer isto dizer: tenho o direito que lutem por mim.
E pronto, foi o post reacionário de hoje. Um abraço.
Estas fontes são muitas vezes parciais e a informação é fornecida com o objetivo de contestar a política vigente, no entanto muitas vezes são usadas meias-palavras ou conceitos abstratos que não entendemos muito bem, por isso eu elaborei um pequeno guia para nos ajudar a perceber o significado de algumas expressões e até a possivelmente também nos envolvermos na contestação.
O povo
Há várias definições diferentes para esta expressão dependendo do contexto em que é usada:
-Eleitorado do PCP. O povo vai sair à rua dia 2 Março.
-Entidade imaginária que tem como código de conduta a Constituição. O povo conquistou o direito a...
-Grupo de pessoas que é objeto de malícia por parte de outro grupo de pessoas - eles. Zé Povinho também pode ser usado. Eles roubam e o povo/Zé Povinho é que paga a fatura.
Eles
Existem para usurpar e oprimir o povo, que lhes é dependente de alguma forma, sejam eles políticos, empresários ou banqueiros.
O eles é um conceito bastante flexível, no sentido de o meu pacato vizinho poder momentaneamente passar a pertencer aos eles desde que por algum motivo ascenda a uma posição pública relevante.
Portanto, eles são iguais ao povo, só que com poder.
Toda a gente já percebeu que...
O interlocutor apresenta uma opinião como se fosse um facto impessoal, para que tenha mais impacto e seja irrefutável.
Por exemplo: Toda a gente já percebeu que este governo tem de cair. Mesmo que discordemos desta afirmação, não podemos refutá-la, por um lado porque há a noção de uma força conjunta à qual não é possível fazer oposição e por outro a noção de não ser possível a discórdia devido a esta afirmação ser imposta sem deixar espaço para o contraditório.
Ninguém cala o povo
É remanescente dos tempos a seguir ao 25 de Abril, mas não tem sentido literal, pois toda a gente sabe que hoje pode falar à vontade por mais absurdo que seja o que tenha a dizer. Neste caso o povo é uma entidade una e temível, que não tem a capacidade de os aniquilar, mas com poder suficiente para limitar algumas ações que eles pretendam levar a cabo contra o povo.
O povo tem de sair à rua
É uma expressão bastante portuguesa, ao remeter para uma ação geral a realização da vontade do interlocutor. Assim sendo, supostamente tem o sentido do raramente ouvido temos de sair à rua mas com a diferença do autor da frase não ter a mínima intenção de sair à rua.
Chega ao extremo de tomar a forma de uma frase que deixei no blog há umas semanas: o povo português tem que se revoltar ir para a rua e defender os nossos direitos. Quer isto dizer: tenho o direito que lutem por mim.
E pronto, foi o post reacionário de hoje. Um abraço.
plano para hoje #0
A vida de uma cidade moderna é feita de conquistas e derrotas - mais hospital, menos hospital, mais cinema, menos cinema.
No entanto, há muitos projetos que sofreram aborto sem sequer ir a referendo. Será esses nados-mortos que vamos dar à luz nesta secção que irá buscar sementes tanto a planos já há muito estéreis como a promissores recém-nascidos. Amamentemo-los.
No entanto, há muitos projetos que sofreram aborto sem sequer ir a referendo. Será esses nados-mortos que vamos dar à luz nesta secção que irá buscar sementes tanto a planos já há muito estéreis como a promissores recém-nascidos. Amamentemo-los.
plano para hoje #1 visconde
Maria Pires Lobo elaborou um ambicioso plano de ordenamento para o inordenável Bairro do Visconde, o único bairro medieval português construído no século XX.
É proposta a substituição da Nigel por um bloco de apartamentos e a construção de um grande centro comercial em frente ao Porto da Areia Sul. De notar que este projeto contempla já o aquecimento global, pois apresenta um nível do mar bastante superior ao atual.
E seria feita uma série de diversos arranjos.
Porque a partir daí mudou tudo. A privacidade passou a ser o principal alvo da televisão, a linguagem grosseira passou a ser tolerada, ser estrela de televisão passou a estar ao alcance de qualquer anónimo desde que conseguisse arranjar forma de conquistar popularidade e passou a haver um quarto canal, que para a maioria das pessoas não tem mais do que 13 anos.
Escavar e fazer pontes é muito fixe, mas não chega.
Vou esperar que a segunda fase das obras chegue depressa e se tiver muita sorte pode ser que ainda esteja vivo quando chegar o dia.
Vou esperar que a segunda fase das obras chegue depressa e se tiver muita sorte pode ser que ainda esteja vivo quando chegar o dia.
A intervenção foi organizada por elementos do grupo “Que se lixe a troika” – como forma de promover a manifestação do dia 2 de Março – e por um conjunto “independente” de estudantes universitários.
Por que é que de há uns tempos para cá ser independente tornou-se sinónimo de pertencer ao PC ou ao Bloco?
o estranho caso da eclusa do fosso
Já ouvi várias versões, mas a mais recente é a de que as comportas não funcionam com grandes diferenciais de água, o que significa, que não vão poder fazer as funções para as quais foram pensadas e construídas.
Se não é requisito do projeto funcionar com grandes diferenciais de água, dêem-me 0,01% do que gastaram e eu meto lá umas chapas de ferro, que fazem o serviço à mesma.
Se não é requisito do projeto funcionar com grandes diferenciais de água, dêem-me 0,01% do que gastaram e eu meto lá umas chapas de ferro, que fazem o serviço à mesma.
Provavelmente já devem ter visto este caso no Peniche Online, mas é tão bom que também o deixo aqui.
Notícia de 30-1-2013:
O casal, que agora se encontra nas ruas das Caldas, apela à sensibilidade para que lhes arranjem trabalho, de modo a poderem alugar uma casa e assim recomeçarem a vida.
Até lá têm tido ajuda de vários desconhecidos que trouxeram também o caso para a praça pública, algo que o casal não se envergonha e apenas agradece, pois o seu principal objetivo é viver com dignidade e com trabalho.
Quem tiver vontade e possibilidade de ajudar poderá ligar para o 962 402 820.
Entretanto, sabe o JORNAL das CALDAS que a junta de freguesia de santo Onofre terá realizado um contato com o casal, assim como a ação social da autarquia, mas desconhece-se o que terá daí resultado.
Notícia de 30-1-2013:
O casal, que agora se encontra nas ruas das Caldas, apela à sensibilidade para que lhes arranjem trabalho, de modo a poderem alugar uma casa e assim recomeçarem a vida.
Até lá têm tido ajuda de vários desconhecidos que trouxeram também o caso para a praça pública, algo que o casal não se envergonha e apenas agradece, pois o seu principal objetivo é viver com dignidade e com trabalho.
Quem tiver vontade e possibilidade de ajudar poderá ligar para o 962 402 820.
Entretanto, sabe o JORNAL das CALDAS que a junta de freguesia de santo Onofre terá realizado um contato com o casal, assim como a ação social da autarquia, mas desconhece-se o que terá daí resultado.
Reportagem da TVI no Carnaval de Torres: link.
Atualização: o Peniche Online retirou o vídeo.
under cover of darkness
Tenho estado a trabalhar bastante para posts que vou colocar aqui no blog, e normalmente os posts que me dão mais trabalho costumam ser os menos maus.
Estou a aproveitar o modo de obturação lenta da minha máquina fotográfica para tirar fotos de Peniche ao entardecer. Será uma rotura abrupta com o que tenho feito até agora - achar que a ocasião merece registo e sacar do telemóvel.
Outra secção será sobre história e vai pegar em temas sobre os quais há pouca informação, pelo que não posso fazer nada a não ser mostrar os elementos que tenho e insinuar o resto. Neste momento estou a tentar minimizar os disparates que daí possam surgir mas também não podemos ser bons todos os dias. Ou se calhar podemos e eu é que não sou. Faço a pesquisa e depois fico a olhar feito parvo para o que encontrei. Enfim alguma coisa terá de sair daqui. O melhor título que me ocorreu para tal iniciativa é... "debaixo de sombra".
Que é como quem diz "under cover of darkness":
Estou a aproveitar o modo de obturação lenta da minha máquina fotográfica para tirar fotos de Peniche ao entardecer. Será uma rotura abrupta com o que tenho feito até agora - achar que a ocasião merece registo e sacar do telemóvel.
Outra secção será sobre história e vai pegar em temas sobre os quais há pouca informação, pelo que não posso fazer nada a não ser mostrar os elementos que tenho e insinuar o resto. Neste momento estou a tentar minimizar os disparates que daí possam surgir mas também não podemos ser bons todos os dias. Ou se calhar podemos e eu é que não sou. Faço a pesquisa e depois fico a olhar feito parvo para o que encontrei. Enfim alguma coisa terá de sair daqui. O melhor título que me ocorreu para tal iniciativa é... "debaixo de sombra".
Que é como quem diz "under cover of darkness":
fuga #4 1960
Passado o chamado "período de observação" passámos a ter
recreio em coletivo e as refeições passaram também a ser colectivas. No recreio
era proibido conversar em voz baixa e no refeitório era simplesmente proibido
falar no decorrer das refeições.
De fora deveriam chegar ate nos dois sinais distintos, confirmando que no exterior tudo estava preparado para a nossa retirada em segurança, a partir de locais da vila de Peniche previamente combinados, para a recolha dos grupos por nós definidos.
A partir daí tudo foi fácil. Saltámos o último obstáculo, o
muro exterior do fosso e encontrámo-nos de imediato a atravessar o largo do
jogo da bola misturados com os muitos populares que vinham de assistir ao jogo
de futebol, discutindo em voz alta o seu resultado. Chegámos assim ao local de
encontro previamente marcado, onde nos esperava um camarada conhecido, o médico
Orlando Lindim Ramos, ao volante do seu carro. Ali aguardámos a chegada dos
outros camaradas fugitivos que, segundo o combinado, deveriam participar
connosco na retirada, entre eles o Joaquim Gomes e o guarda Jorge Alves.
Mesmo nestas condições começámos a organizar o trabalho
partidário, tendo sido dada toda a prioridade ao estudo das possibilidades de
fuga.
Nunca me conformei com a ideia de que haja alguma prisão absolutamente
invulnerável. Passámos a estudar com atenção todas as hipóteses, os riscos e o
grau de possibilidades de tal ou tal hipótese. As nossas dificuldades eram
acrescidas pelo facto de em qualquer caso excluirmos actos de violência que
pudessem conduzir à perda de vidas. Antes, procurar explorar qualquer possibilidade
de colaboração, aliciamento ou "distração" da parte dos guardas.
Formámos um organismo restrito, constituído por Álvaro
Cunhal, Joaquim Gomes e eu próprio, com a incumbência exclusiva de estudar
sistematicamente todas as hipóteses de fuga. Mesmo com as dificuldades de
comunicação existentes, reuníamos todos os dias.
Numa dada altura, por meados de 1959, o camarada Joaquim Gomes conseguiu meter conversa, através das grades da janela da sua cela, com o guarda da GNR que fazia ali serviço e que viria a ser a chave mestra da fuga, o soldado Jorge Alves. Dessa conversa pôde concluir-se estarmos perante uma pessoa revoltada, como havia muitas, por razões puramente profissionais que se extravasavam de forma vaga para o plano político. Percebeu-se que o homem se considerava prejudicado na sua carreira profissional, pois, segundo ele, já deveria ter sido promovido a um posto superior, "talvez já devesse ser sargento". Escusado será dizer que o camarada Joaquim Gomes apoiou a sua revolta procurando conduzi-la para o plano político. Tudo isto em conversas muito rápidas e soltas nos períodos em que o soldado da GNR estava de serviço. O regulamento de serviço proibia lhes terminantemente conversar ou alimentar qualquer conversa com os presos políticos. O certo é que a conversa foi evoluindo e nas vezes que o guarda Jorge Alves passou por aquele serviço de "diligência" em Peniche a situação ficou suficientemente amadurecida para, por via partidária, o "cerco político" passar a fazer-se no exterior.
Deve insistir-se no melindre destes contactos unia vez que este homem não tinha nenhum esclarecimento político. O que eventualmente o podia levar a colaborar nos nossos propósitos era o sentimento de revolta e algum interesse material. No tratamento destas questões com a direção do partido no exterior, tudo era tratado literalmente em cifra escrita em papel de mortalha, mais facilmente "passável" pelas malhas da vigilância dos carcereiros. Em virtude dum comportamento calculado, na relação com os carcereiros, havíamos conquistado nesse período uma série de "regalias" no dia-a-dia prisional. Tínhamos jornais que circulavam livremente de cela em cela, passámos a ter acesso ao refeitório à tarde, com hora de leitura suplementar. Podíamos praticar jogos de xadrez e damas e, a partir de certa altura, foi mesmo autorizada a audição de discos, num gira-discos vindo do exterior e montado no refeitório. Esta situação aumentou as nossas possibilidades de contacto de uns com os outros.
Nos últimos dois meses de 1959, o plano de fuga avançou rapidamente na sua concretização graças ao trabalho desenvolvido no exterior pelo Secretariado do Comité Central, constituído então por Octávio Pato, Joaquim Pires Jorge e António Dias Lourenço. O guarda da GNR, Jorge Alves, foi definitivamente ganho para nos ajudar na fuga, ainda que com muitas hesitações e receios e na condição de o colocarmos no estrangeiro após a fuga, assim como duma certa quantia em dinheiro para sustentar os familiares, enquanto estes não se juntassem a ele.
Numa dada altura, por meados de 1959, o camarada Joaquim Gomes conseguiu meter conversa, através das grades da janela da sua cela, com o guarda da GNR que fazia ali serviço e que viria a ser a chave mestra da fuga, o soldado Jorge Alves. Dessa conversa pôde concluir-se estarmos perante uma pessoa revoltada, como havia muitas, por razões puramente profissionais que se extravasavam de forma vaga para o plano político. Percebeu-se que o homem se considerava prejudicado na sua carreira profissional, pois, segundo ele, já deveria ter sido promovido a um posto superior, "talvez já devesse ser sargento". Escusado será dizer que o camarada Joaquim Gomes apoiou a sua revolta procurando conduzi-la para o plano político. Tudo isto em conversas muito rápidas e soltas nos períodos em que o soldado da GNR estava de serviço. O regulamento de serviço proibia lhes terminantemente conversar ou alimentar qualquer conversa com os presos políticos. O certo é que a conversa foi evoluindo e nas vezes que o guarda Jorge Alves passou por aquele serviço de "diligência" em Peniche a situação ficou suficientemente amadurecida para, por via partidária, o "cerco político" passar a fazer-se no exterior.
Deve insistir-se no melindre destes contactos unia vez que este homem não tinha nenhum esclarecimento político. O que eventualmente o podia levar a colaborar nos nossos propósitos era o sentimento de revolta e algum interesse material. No tratamento destas questões com a direção do partido no exterior, tudo era tratado literalmente em cifra escrita em papel de mortalha, mais facilmente "passável" pelas malhas da vigilância dos carcereiros. Em virtude dum comportamento calculado, na relação com os carcereiros, havíamos conquistado nesse período uma série de "regalias" no dia-a-dia prisional. Tínhamos jornais que circulavam livremente de cela em cela, passámos a ter acesso ao refeitório à tarde, com hora de leitura suplementar. Podíamos praticar jogos de xadrez e damas e, a partir de certa altura, foi mesmo autorizada a audição de discos, num gira-discos vindo do exterior e montado no refeitório. Esta situação aumentou as nossas possibilidades de contacto de uns com os outros.
Nos últimos dois meses de 1959, o plano de fuga avançou rapidamente na sua concretização graças ao trabalho desenvolvido no exterior pelo Secretariado do Comité Central, constituído então por Octávio Pato, Joaquim Pires Jorge e António Dias Lourenço. O guarda da GNR, Jorge Alves, foi definitivamente ganho para nos ajudar na fuga, ainda que com muitas hesitações e receios e na condição de o colocarmos no estrangeiro após a fuga, assim como duma certa quantia em dinheiro para sustentar os familiares, enquanto estes não se juntassem a ele.
Como a próxima "diligência" em Peniche da companhia da GNR a
que o Jorge Alves pertencia estava marcada para o mês de Janeiro de 1960, tudo
foi combinado, por proposta dele, para o dia 10. Subitamente, por razões não
explicadas, já no dia 1, ele antecipou a acção para o dia 3 de Janeiro.
De fora deveriam chegar ate nos dois sinais distintos, confirmando que no exterior tudo estava preparado para a nossa retirada em segurança, a partir de locais da vila de Peniche previamente combinados, para a recolha dos grupos por nós definidos.
Um dos sinais, o primeiro, deveria ser-nos dado através das
visitas, logo a seguir ao almoço. Este sinal, por dificuldades surgidas nos
encontros no exterior, falhou, não foi dado.
O segundo sinal consistia no aparecimento no largo fronteiro
as celas do lado Norte, de um carro com a tampa dos porta-bagagens levantado, o
qual, após percorrer alguns metros bem à vista de nós, parava e o seu condutor
saí calmamente do automóvel e fechava a tampa do porta-bagagens.
Este sinal concretizou-se. À hora combinada, o carro, conduzido pelo
militante comunista e conhecido actor teatral Rogério Paulo, realizou com
perfeição esta manobra.
No interior da cadeia, ficámos algo perturbados com a falta do
primeiro sinal. Estabeleceu-se alguma discussão sobre se a fuga deveria ir para
diante com tais condições. Houve quem levantasse dúvidas, e eu fui um deles,
quanto a lançarmo-nos numa ação de tão grande responsabilidade face à ausência
do sinal de avançar vindo do exterior. Foi decidido fazer-se uma rápida
auscultação entre os camaradas envolvidos na fuga, tendo¬se optado
maioritariamente pela decisão de ir para a frente.
Quando surgiu o segundo sinal já tudo estava decidido quanto
à concretização da fuga.
A partir desse momento desencadeou-se toda a preparação dos
preparativos "irreversíveis" — rasgar lençóis em tiras e uni-los com nos
sólidos previamente estudados, fazendo ainda mais dois nós em cada tira de modo
a reforçar a "corda" assim formada e a facilitar a segurança da descida.
Os camaradas que ficaram responsáveis por esse trabalho
utilizaram os seus próprios lençóis. Na hora H seriam todos juntos e entregues
ao Francisco Miguel. que se encarregou da ligação das partes com uns nós
especiais, a pescador, em que ele se especializara.
As ampolas com o clorofórmio para neutralizar o guarda
prisional encontravam-se também já em nosso poder.
Após a hora do jantar, que foi assistido nesse dia pelo
guarda Serrado, cerca das 19 horas, desencadeou-se a "operação". O sinal de
partida foi dado, sem o saber, pelo próprio guarda ao apitar para nos
levantarmos após a refeição.
No corredor e a saída do refeitório formou-se um "cortejo" de camaradas de modo a envolver o guarda, distraindo-o sobre qualquer sinal de
nervosismo que eventualmente se manifestasse da nossa parte.
Deve lembrar-se que todos os presos desse 3.° piso estavam a
par, de um modo geral, sobre o que se preparava. Todos foram informados e
consultados previamente quanto à disposição ou interesse em participar na fuga,
de tal modo que com alguma antecedência se soubesse quem ia fugir e quem
ficava.
O critério que presidiu a esta selecção partiu do princípio
de que quem fugia da cadeia era para continuar luta na clandestinidade, logo
foram seleccionados todos os que estavam nessa disposição.
Assim, fugiram: Alvaro Cunhal, Jaime Serra, Joaquim Gomes,
Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares, Guilherme da Costa Carvalho, Rogério de
Carvalho. José Carlos e Francisco Martins Rodrigues.
Ficaram na Cadeia, por opção própria ou por não se
enquadrarem no critério atrás referido, Borges Coelho, Humberto Lopes, Manuel
Andrade e António Rego. Estes, embora não fugindo, deram à execução da fuga
todo o apoio que puderam.
O processamento da fuga foi muito rápido porque todos os
passos estavam cronometrados com rigor e cada um sabia o que tinha a fazer,
incluindo a ordem de saída.
No momento previsto e como estava combinado entre nós, o
guarda Serrado sentiu cerrado à volta do pescoço um laço feito com uma toalha,
tendo ficado imobilizado quase instantâneamente. Esta tarefa foi realizada pelo
camarada Guilherme de Carvalho, que dela Ioi incumbido por ter uma constituição
física adequada para o efeito. O clorofórmio foi aplicado de imediato e foi-lhe
metida na boca a pega metálica utilizada habitualmente nos hospitais para
segurar a língua de modo a evitar que o paciente fique asfixiado.
Como se esperava, o guarda nem “piou”, tendo sido metido em
estado inconsciente numa das celas que ficou vazia. Havia certa preocupação
dado o facto de termos sido prevenidos que o clorofórmio é mais difícil de atuar
sobre indivíduos alcoólicos. O guarda Serrado era um desses. Felizmente que ao
efeito do clorofórmio se juntou o efeito do susto de tal modo forte que,
segundo soubemos depois, quando o foram libertar cheirava mal...
Os camaradas que ficavam recolheram às suas celas, tendo
eles próprios fechado as suas portas. No refeitório, o nosso gira-discos ficou
a tocar uma bonita sinfonia, a Patética de Tchaikóvski...
A segunda fase da operação desenrolou-se no exterior do
bloco prisional sob a responsabilidade do guarda Jorge Alves. Como estava
previsto, juntamente com o camarada Alvaro Cunhal, constituímos o primeiro
grupo a percorrer, sob a capa do guarda Jorge Alves, a distância que nos
separava duma horta existente num terreno subjacente à muralha da Fortaleza por
onde íamos descer.
Tendo alcançado o torreão da fortaleza, tratámos de amarrar solidamente a uma fresta desse torreão uma ponta da "corda" de tiras de lençol por onde descemos.
Tendo alcançado o torreão da fortaleza, tratámos de amarrar solidamente a uma fresta desse torreão uma ponta da "corda" de tiras de lençol por onde descemos.
Na descida verificaram-se dois acidentes: com o Guilherme da
Costa Carvalho, que se feriu na face ao cair de uma certa altura, e com o Pedro
Soares, que também caiu, ainda dentro da Fortaleza, ao saltar para uma horta,
tendo torcido um pé.
A parte final da fuga, assim como a retirada, não decorreram
exatamente como estava previsto, por dificuldades resultantes do comportamento
do guarda Jorge Alves nessa fase final. Assustado pelo facto de ter sido
confrontado com o aparecimento de um número de fugitivos superior ao que
provavelmente lhe haviam dito, entrou em pânico e ia deitando tudo a perder.
Valeu, na oportunidade, a serenidade e determinação dos camaradas que se
confrontaram com essa situação, particularmente do camarada Joaquim Gomes.
Por este facto, o carro conduzido por Lindim Ramos
transportou menos dois fugitivos do que estava previsto (Carlos Costa e Pedro
Soares) e o outro carro, conduzido pelo camarada Carlos Plácido de
Sousa, teve de transportar oito pessoas — sete fugitivos mais o condutor. Valeu
a circunstância de se tratar de um grande carro americano que transportou toda
aquela gente sem dificuldades embora, por uma questão de segurança, dois deles
fossem deitados de modo a não serem vistos do exterior.
A despeito daqueles pequenos acidentes, concluiu-se com
pleno êxito uma das mais audaciosas e espetaculares fugas de toda a longa
história do regime fascista. Ela constituiu para os salazaristas uma profunda
derrota, na mesma medida em que constituiu para o PCP uma extraordinária
vitória política, ao recuperar para a luta uma dezena de destacados dirigentes
do partido, incluindo aquele que viria ser o seu secretário-geral, o camarada Álvaro
Cunhal. A repercussão nacional e internacional foi enorme, constituindo, além
do mais, uma grande humilhação para o regime.
Jaime Serra
fuga #3 1954
Quando se deu o fracasso da descoberta do túnel da sala 4,
por onde se deviam evadir camaradas, tornou¬se claro para todos que o nosso
plano de fuga coletiva estava prejudicado, pelo menos por algum tempo. Mas
esse facto não afectou muito o ânimo de alguns camaradas que persistiam
em encontrar um caminho para a liberdade e continuar a luta. Vários projetos
individuais foram surgindo, entre eles o velho sonho de fugir do segredo.
Era a tentação de todos os presos que por lá passavam. E
foram muitos nesse tempo. Quem não pensou em encontrar maneira de sair daquele
redondo, de noite, descendo das muralhas para o mar e daí alcançar terra
firme?!...
O tempo de espera não foi muito.
Não era, aliás, uma façanha inédita: já no passado alguém
conseguira evadir-se pela furna, que tinha uma abertura para a parada, com a
ajuda de uma pequena bateira. Por isso os carcereiros tinham reforçado a segurança
naquela zona para evitar novas fugas.
Alguns de nós tínhamos passado pelo "segredo" longos
períodos e por várias vezes. Nos muitos dias que ali vivemos tivemos ocasião de
imaginar e estudar todas as várias possibilidades de evasão. Como também observámos
os diversos obstáculos que podiam levar ao seu fracasso.
O "segredo" consistia nuns
pequenos cubículos com uma única porta de madeira, grossa e reforçada com algumas cintas metálicas. Mantinham-se permanentemente fechadas, com fechaduras
e ferragens exteriores. O chão era cimentado. A vigilância permanente era feita
por um guarda prisional a partir de um posto a cerca de 50 metros de distância.
Duas sentinelas da GNR, de ângulos diferentes, vigiavam-no com intermitências.
O portão exterior do redondo mantinha-se sempre aberto, a
área bem iluminada e o guarda tinha a recomendação de manter a porta do "segredo" sob vigia. A ronda passava de duas em duas horas: batia com as chaves
ou chamava e esperava que respondêssemos.
A porta só se abria nas horas das refeições — de manha, ao
café, ao almoço e ao jantar. Nas horas de abertura de manhã e de fecho à noite
íamos às muralhas, acompanhados do guarda fazer despejos para o mar.
Qualquer tentativa de evasão comportava grandes riscos e o
seu êxito dependia, em grande medida, de muita audácia, muita coragem e
determinação e um bom sentido organizativo para levar à prática um plano bem
arquitetado. E também era preciso alguma sorte...
Foi naturalmente um pequeno número de pessoas que estudaram o plano de fuga do «segredo». Nesse grupo estava o Dias Lourenço, seu grande entusiasta e principal personagem. Acabou por ser ele a ir parar ao "segredo" e a pôr em pratica o plano. Por várias razões mas também porque era, entre todos, o que melhor nadava. O grande perigo estava no mar...
Para sair do "segredo" o único meio era abrir um postigo na porta, de tamanho suficiente para passar um corpo. Para isso era necessário uma boa faca com bico bem afiado... e tempo. O tempo nunca foi problema para um preso, e quanto a faca o Dias Lourenço lá arranjou uma boa faca de sapateiro que conseguiu fazer passar consigo quando ingressou no "segredo", tarefa nada fácil porque os que entravam eram despidos em pelota e as roupas e objectos pessoais pesquisados com minúcia.
Foi naturalmente um pequeno número de pessoas que estudaram o plano de fuga do «segredo». Nesse grupo estava o Dias Lourenço, seu grande entusiasta e principal personagem. Acabou por ser ele a ir parar ao "segredo" e a pôr em pratica o plano. Por várias razões mas também porque era, entre todos, o que melhor nadava. O grande perigo estava no mar...
Para sair do "segredo" o único meio era abrir um postigo na porta, de tamanho suficiente para passar um corpo. Para isso era necessário uma boa faca com bico bem afiado... e tempo. O tempo nunca foi problema para um preso, e quanto a faca o Dias Lourenço lá arranjou uma boa faca de sapateiro que conseguiu fazer passar consigo quando ingressou no "segredo", tarefa nada fácil porque os que entravam eram despidos em pelota e as roupas e objectos pessoais pesquisados com minúcia.
Para descer das muralhas até ao mar era necessário uma
corda. As três mantas que nos distribuíam, rasgadas em tiras, podiam servir de
corda. Lembra-me de uma pequena dúvida que se levantou na discussão deste pormenor:
do alto das muralhas até ao mar seriam cerca de 16 metros medidos o que
obrigava a uma corda resistente.
O outro risco era poder ser visto pelo guarda da porta em
frente, ao sair pelo postigo. Também me recordo que foi lembrada a conveniência
de aproveitar, se possível, o turno do guarda Samuel, um velhote inofensivo que
às vezes até se metia nos copos.
Tudo foi previsto, inclusive o plano das marés de modo a
fazer coincidir a fuga com uma baixa-mar...
Estávamos em tempo de repressão e não foi difícil Dias
Lourenço apanhar inesperadamente alguns dias de castigo no "segredo". Não lhe
foi imediatamente possível levar à prática a saída e ao fim de dez dias
regressou à caserna coletiva.
Ao chegar disse-nos
que o postigo estava praticamente cortado. Pressionando a faca com a mão
conseguira fazer penetrar o bico até ao exterior. O postigo ficara preso apenas
em poucos locais. Os cortes finais seriam dados na noite da fuga e colocaria o
postigo no mesmo lugar para que o vigia, vendo o buraco na porta, não desse o alarme.
Só na primeira contagem às cinco da manha a fuga seria descoberta.
Tudo em ordem, só faltava fazer os restantes preparativos...
Naquele dia nenhum de nós pensava que a intervenção do
guarda Pôpa viesse apressar e colaborar nos planos da fuga... As circunstâncias
contribuíram para muita gente pensar (mesmo os carcereiros) que aquela ida para
o "segredo" foi provocada por nós ou pelo Dias Lourenço. Mas a verdade não é
essa. De fato esperava-se o momento oportuno. E o momento oportuno foi o guarda
Pôpa quem o precipitou.
O Dias Lourenço escrevia nesse dia urna mensagem para o
Partido (era ele quem nessa altura tinha essa tarefa). Estava sentado na cama
a um canto escondido da sala. O guarda Pôpa estava de serviço à nossa caserna e
passava de um lado para outro, em frente das janelas, como um cão perdigueiro â
procura da caça. Viu o Antonio recolhido no canto a escrever, desconfiou e
decidiu atacar. Abriu repentinamente a porta e entrou na caserna. O Dias
Lourenço dobrou negligentemente o papel e meteu-o na sua mala. Daí a pouco o Pôpa
foi à mala, abriu a tampa, tirou o papel e ia desdobrá-lo para ler. O António,
de surpresa, tirou-lho das mãos e meteu-o na boca. Envolveram-se em luta.
Enquanto engolia o papel foi levado aos empurrões para fora da sala.
Lembra-me que naquela confusão o Dias Lourenço ainda teve
tempo para me lançar um olhar significativo que eu interpretei como indicação
de que ia aproveitar a oportunidade.
O tempo que se seguiu à sua ida para o "segredo" foi para
todos nós tempo de preocupação e grande ansiedade. Esperávamos a todo o
momento, de dia e de noite, uma qualquer indicação do que se teria passado.
Teria conseguido sair pelo postigo? Como teria iludido a vigilância do guarda?
Como teria conseguido a descida da nitiralha para o mar?
Era todo um mundo de interrogações que nos preocupavam.
Sempre que um guarda se aproximava ou abria a porta da sala esperávamos poder
observar qualquer indício que fosse uma resposta à nossa ansiedade.
O tempo de espera não foi muito.
Numa manhã seguinte dois guardas entraram na caserna e
dirigiram-se para a minha cama. Pressenti imediatamente que tudo se tinha
consumado — para o bem ou para o mal.
— Onde estão as coisas do senhor Dias Lourenço? —
perguntaram, sem se dirigir particularmente a ninguém.
Todos os guardas sabiam onde ficava a cama do Dias Lourenço,
por isso se encaminharam para o nosso canto. Eu e o Dias Lourenço sempre
tivemos as nossas camas ao lado uma da outra, e as coisas mais importantes do
Dias Lourenço já eu as tinha misturado com as minhas.
Os guardas pegaram em tudo que lhes foi indicado e foram
levando. Insistimos para nos explicarem porquê. Não nos deram resposta. Mais
tarde conseguimos saber que tinha havido fuga, mas não sabíamos se ela se tinha
ou não consumado.
A nossa ansiedade aumentou quando, um ou dois dias depois,
os carcereiros fizeram correr a notícia que o Dias Lourenço devia ter-se
afogado porque algumas das suas roupas tinham sido recolhidas no mar.
Ficámos assim a saber que a fuga tinha sido um facto; que o
Dias Lourenço não tinha sido preso à saída do "segredo"; e que tinha conseguido
chegar ao mar. O aparecimento das roupas não nos preocupou muito: tínhamos uma
explicação para isso. A nossa principal preocupação era saber se tinha
conseguido chegar ao seu destino...
Mais tarde soube-se que naquela noite, em que Dias Lourenço decidiu dar início à fase final e mais difícil da fuga, os dados estavam lançados para o certo ou para o torto.
Joaquim Campino
Mais tarde soube-se que naquela noite, em que Dias Lourenço decidiu dar início à fase final e mais difícil da fuga, os dados estavam lançados para o certo ou para o torto.
Com as mantas fez a corda para descer para o mar e com a
faca procedeu ao corte da parte da madeira que ainda sustentava o quadrado que
abrira na porta a medida do seu corpo. Com todo o cuidado retirou o quadrado da
madeira voltando a colocá-lo para escapar à observação da próxima ronda.
Ao descer as rochas, observou que o mar estava mais agitado
do que havia previsto, com grande rebentação e ondas de respeito. Para
complicar as coisas, a corda havia ficado mais curta do que a distancia a
descer e por tudo isto entrou na água de forma descontrolada, tendo-se ferido e
perdido logo, levada pelas ondas, a roupa que que tinha presa à cabeça.
Nadou durante bastante tempo tendo acabado por ir parar não
à pequena praia que fica próximo da entrada da fortaleza, como pretendia, mas
sim a uma zona bastante afastada, nas proximidades do local onde então funcionava
a lota do peixe e onde havia a essa hora bastante movimento de pescadores e
negociantes de peixe que o transportavam em camionetas de venda.
Foi aos tripulantes duma dessas camionetas que Dias Lourenço
se dirigiu, pedindo boleia quando estes se aprontavam para partir com o peixe
que haviam comprado.
Pediu boleia para o Bombarral depois de informado que era
para esta terra que eles se dirigiam. Perante o seu aspeto, com barba de 15
dias e encharcado até aos ossos a resposta foi uma recusa terminante com o
argumento de que excedia a tripulação de sete homens e que teriam de passar
pelo controlo da polícia de trânsito à saída de Peniche.
Face a tal situação Dias Lourenço resolveu jogar tudo por
tudo. Disse quem era, um preso político que acabava de se evadir da fortaleza e
que se não lhe dessem boleia acabaria por voltar a ser preso. Perante tal
dilema, revelando um grande sentimento antifascista a tripulação da camioneta,
após uma rápida conferência entre eles, acederam ao seu pedido transportando-o,
escondido entre eles, até ao Bombarral onde encontrou apoio numa casa de
camaradas que já conhecia.
Jaime Serra
ipsis verbis
Há um apanhado de coisas pensadas antes de serem escritas (ainda se faz disso em Portugal) que dá pelo nome de Expresso. Deixo algumas ideias publicadas no último número (2 de fevereiro):
Talvez parar para pensar melhor no assunto não fosse má ideia. Mas aí é que bate o ponto: por definição, a democracia viral não tem tempo para pensar, é instantânea e imediatamente contagiante, como todos os vírus. E disso depende a sua eficácia. Acrescente-se-lhe o exército de repórteres-justiceiros que, de telemóvel em punho e Facebook à espera, estão sempre alerta para que nada lhes escape, e temos, em todo o seu esplendor, o processo de formação das opiniões públicas nos tempos de hoje. Suicidariamente, os jornalistas e as instituições movem-se por reação e não por reflexo. Não param também para pensar se um determinado acontecimento, sufragado pelo "efeito viral", tem ou não mérito em si mesmo: a partir do momento em que existe, a notícia passa a ser a sua própria existência e há que reagir.
Sem explicar os seus fundamentos objetivos, o governo permitiu a previsível fuga do PS, que está convicto de que, politicamente, ganhará muito com isso. Silencioso quanto às verdadeiras razões desta reforma, o governo permitiu, assim, que a discussão se deslocasse para o plano ideológico, quando se trata apenas de falta de dinheiro.
Toda esta novela de António Costa, toda esta indecisão, toda esta falta de clareza, obrigam-nos a pensar se ele tem o que o próximo primeiro-ministro precisa de ter. Em bom português: tomates.
Boa parte da classe política, cada vez mais cega e pindérica, não percebe que esta visão tem um preço: também os eleitores passaram a ver os políticos, não como pessoas dedicadas à comunidade, mas como alguém que se serve a si próprio. O facto de terem (cada vez menos) votos não significa respeito. O respeito, caros eleitos, é algo que a maioria de vós já há muito perdeu. Com ele foi-se a coragem que vos falta para quase tudo o que seja ir contra a corrente: de aprovar salários decentes para os políticos a defender sequer o direito que têm à privacidade.
São mal tratados.
Mas põem-se muito a jeito.
Talvez parar para pensar melhor no assunto não fosse má ideia. Mas aí é que bate o ponto: por definição, a democracia viral não tem tempo para pensar, é instantânea e imediatamente contagiante, como todos os vírus. E disso depende a sua eficácia. Acrescente-se-lhe o exército de repórteres-justiceiros que, de telemóvel em punho e Facebook à espera, estão sempre alerta para que nada lhes escape, e temos, em todo o seu esplendor, o processo de formação das opiniões públicas nos tempos de hoje. Suicidariamente, os jornalistas e as instituições movem-se por reação e não por reflexo. Não param também para pensar se um determinado acontecimento, sufragado pelo "efeito viral", tem ou não mérito em si mesmo: a partir do momento em que existe, a notícia passa a ser a sua própria existência e há que reagir.
Miguel Sousa Tavares
Sem explicar os seus fundamentos objetivos, o governo permitiu a previsível fuga do PS, que está convicto de que, politicamente, ganhará muito com isso. Silencioso quanto às verdadeiras razões desta reforma, o governo permitiu, assim, que a discussão se deslocasse para o plano ideológico, quando se trata apenas de falta de dinheiro.
Medina Carreira
Toda esta novela de António Costa, toda esta indecisão, toda esta falta de clareza, obrigam-nos a pensar se ele tem o que o próximo primeiro-ministro precisa de ter. Em bom português: tomates.
Daniel Oliveira
No Canadá, os governos foram forçados a atuar, porque a opinião pública tomou consciência de que o aumento dos défices significava mais impostos no futuro. Por cá, nenhum governo será penalizado por "fazer obra".
Nicolau Santos
Boa parte da classe política, cada vez mais cega e pindérica, não percebe que esta visão tem um preço: também os eleitores passaram a ver os políticos, não como pessoas dedicadas à comunidade, mas como alguém que se serve a si próprio. O facto de terem (cada vez menos) votos não significa respeito. O respeito, caros eleitos, é algo que a maioria de vós já há muito perdeu. Com ele foi-se a coragem que vos falta para quase tudo o que seja ir contra a corrente: de aprovar salários decentes para os políticos a defender sequer o direito que têm à privacidade.
São mal tratados.
Mas põem-se muito a jeito.
Henrique Monteiro
e porque há dois dias foi domingo
A probabilidade da vida existir sem Deus é a mesma de um camião carregado de farinha, ovo, leite, manteiga e açúcar capotar e explodir e tu tirares um bolo lá de dentro.
fuga #2 1953
Alcançar a liberdade e voltar à luta era uma das maiores
aspirações dos presos da caserna 5, onde me encontrava. A recordação de que fora
dali que se evadiram os camaradas Jaime Serra e Francisco Miguel exercia sobre
todos nós uma contagiante confiança de que também nós seríamos capazes de encontrar
uma saída para a liberdade. Não necessariamente a mesma que os camaradas
encontraram. Estava ainda muito fresco na memória dos carcereiros o processo
utilizado — grades serradas, subir para o telhado e dali descer as muralhas
para as rochas até chegar ao cais.
Assistíamos à rotina de todos os dias — os guardas nas rondas batiam com a chave nas grades da janela. Pelo som mais ou menos metálico podiam aperceber-se se alguma delas estava serrada ou começada a serrar.
Assistíamos à rotina de todos os dias — os guardas nas rondas batiam com a chave nas grades da janela. Pelo som mais ou menos metálico podiam aperceber-se se alguma delas estava serrada ou começada a serrar.
Sabíamos que naquela caserna já em tempos se havia tentado a
fuga furando a parede para o exterior. Fatos pendurados em cabides ao longo das
paredes escondiam o buraco e as pedras e a caliça retiradas do buraco eram
disfarçadas em embrulhos e colocadas nas prateleiras. A tentativa fora
descoberta e agora os guardas sempre que entravam na caserna percorriam com o
olhar as paredes e não permitiam um ou outro papel a cobri-las.
—Só há um caminho para sair daqui! — disse alguém certo dia.
—Qual?...
—O chão!...
—Qual?...
—O chão!...
A princípio a ideia não foi levada a sério. O chão era
cimentado. Como era possível abrir caminho através do cimento?... E não apenas
o cimento: havia também todas as possibilidades de uma vez furado o cimento se
encontrar rocha. Onde encontrar os instrumentos para abrir caminho através da
rocha?! Como dissimular o buraco durante as rusgas dos guardas? Como fazer
desaparecer a terra ou as pedras que iríamos tirar do buraco?...
Cada um ficou a ruminar em todas estas dificuldades e aos
poucos, à medida que os dias e as semanas iam passando, íamo-nos familiarizando
com o projecto e cada um ia encontrando soluções possíveis para as
dificuldades.
A capa do cimento podia não ser muito grossa... Mesmo que a
caserna assentasse sobre rocha esta não é lisa e podia até haver urna galeria
que nos levasse ao exterior, etc., etc.
—O mais difícil seria furar a muralha! — dizia um.
— As paredes da muralha não são feitas em cimento! — dizia o Lobão Vital, com a sua autoridade de arquiteto. Naquele tempo não havia cimento e as pedras eram presas com cal. É fácil desprender, pedra a pedra.
— As paredes da muralha não são feitas em cimento! — dizia o Lobão Vital, com a sua autoridade de arquiteto. Naquele tempo não havia cimento e as pedras eram presas com cal. É fácil desprender, pedra a pedra.
Podemos fazer entrar alguns escopros entalados nas tábuas de
unia mala — sugeriu outro.
—O buraco pode ser feito debaixo de uma cama para não ser
visto pelo guarda nas rondas!
—Não é boa solução — discordava alguém. — O mais seguro é fazer uma tampa de cimento!
— E o cimento? Só se pedíssemos ao Afonso (guarda de confiança)! — Não é arriscado?
—Não é boa solução — discordava alguém. — O mais seguro é fazer uma tampa de cimento!
— E o cimento? Só se pedíssemos ao Afonso (guarda de confiança)! — Não é arriscado?
Era um mundo de interrogações para o que foi necessário
encontrar resposta.
A verdade é que passadas algumas semanas começámos a abrir
um buraco debaixo da cama do Gabriel.
Foi montada vigilância na janela para suspender o trabalho
logo que o guarda se aproximasse. Havia escopros e martelos. Foi marcado no
chão um quadrado de pouco mais de 50 centímetros e começámos a abrir um poço.
Quando a placa estava quase cortada foi feita uma tampa com o cimento que o
Afonso nos trouxe da vila. A ferragem de uma cama serviu de estrutura metálica.
Sempre que o trabalho era interrompido pela chegada da ronda a tampa era
colocada a fechar o buraco. As fendas eram disfarçadas com miolo de pão
amassado com pó de cimento.
Quando furámos o cimento alimentámos a esperança de avançar
depressa porque apareceu terra. Mas a um metro de profundidade a rocha
apareceu. Apesar disso ninguém falou em desistir.
Dia após dia íamos partindo pedra e retirando terra. Aos
poucos era escoada no latão do lixo que todos os dias despejávamos ao mar, de
cima das muralhas.
Um dia aconteceu o que ninguém tinha previsto.
Um dia aconteceu o que ninguém tinha previsto.
Estávamos na hora da limpeza. Dois camaradas foram despejar
o lixo acompanhados do guarda. De cima da muralha despejaram o latão corno era
costume. Por cima deles, debruçado numa das ameias, a sentinela da Guarda
Republicana observava e viu cair pedras à mistura com os papéis e outro lixo. O
barulho de alguns pedregulhos ao cair na água chamou a sua atenção. Lá de cima
gritou ao guarda:
Estão a despejar pedras!... Está a ouvir, senhor guarda?!
O guarda fingiu não ouvir mas os nossos camaradas vieram,
alarmados, dar a notícia.
Precisávamos tomar medidas imediatas. O guarda foi¬se embora
mas passado pouco tempo vimos chegar vários guardas que passaram uma revista à
caserna batendo nas paredes.
Quando saíram tomámos uma iniciativa arriscada. Pedimos
através do Gabriel, nosso chefe de caserna, que nos permitissem caiar as
paredes.
Há muito que vínhamos pedindo para nos caiarem a caserna.
Respondiam que a caiássemos nós. Os carcereiros ficaram agora surpreendidos e aceitaram
imediatamente. Forneceram a cal e os pincéis e mandaram-nos pôr imediatamente
as camas na rua.
Tínhamos calculado isso mesmo. À medida que íamos pondo as
camas cá fora íamos também vasculhando o tecto com grandes vassouras. O pó
branco que se desprendia das paredes ia caindo no chão cobrindo-o com unia
camada branca uniforme. A mancha quadrada do cimento novo ficou assim
disfarçada. Os guardas inspecionaram todos os cantos da caserna, acompanhados
do chefe Vítor Ramos e do adjunto Bastos mas nada encontraram de suspeito. Ao
fim do dia mandaram pôr as camas para dentro.
Alguns dias depois mandaram-nos pôr de novo as camas na rua
e deram ordem para lavarmos a caserna. Enquanto colocávamos as camas na rua
carregávamos os baldes e os esfregões para dentro e começámos a baldear.
Com toda a naturalidade um de nós encarregou-se de "defender" o quadrado, mantendo sempre em cima da mancha um balde e o esfregão.
Mais uma vez houve revista com vários guardas e os seus chefes. Depois de darem
por terminada a revista, o Afonso, que tinha ficado de serviço, entrou na
caserna e perguntou a rir:
— Como é que fizeram o buraco que ninguém o vê?
Tinha os pés precisamente em cima dele.
—E quem é que te disse que há buraco? — retorqui-lhe eu.
—Então para que foi o cimento?
—Então para que foi o cimento?
Como não lhe respondemos saiu a rir e não insistiu.
Passaram-se mais alguns dias e veio a ordem para mudarmos para a caserna 4. O buraco lá ficou tapado. A tampa ficou apoiada sobre uma armação de madeira.
Passaram-se mais alguns dias e veio a ordem para mudarmos para a caserna 4. O buraco lá ficou tapado. A tampa ficou apoiada sobre uma armação de madeira.
Dali em diante a caserna 5 não recebeu mais nenhum preso.
Foi ali instalado o refeitório da GNR.
A interrupção forçada da tentativa de fuga na sala 5 em vez
de nos desanimar teve o efeito de despertar em todos nós uma ânsia incontida de
alcançar a liberdade pelas nossas próprias mãos.
Ao entrarmos na caserna 4 íamos ainda sob a influência do plano que arquitetámos: fazer um túnel subterrâneo que nos levasse às muralhas. Reparámos, logo que entrámos, que o chão não era de cimento, mas em soalho. Era uma circunstância favorável. Na primeira oportunidade despregámos uma tábua e vimos com satisfação que por debaixo era terra solta sem vestígios de rocha.
Ao entrarmos na caserna 4 íamos ainda sob a influência do plano que arquitetámos: fazer um túnel subterrâneo que nos levasse às muralhas. Reparámos, logo que entrámos, que o chão não era de cimento, mas em soalho. Era uma circunstância favorável. Na primeira oportunidade despregámos uma tábua e vimos com satisfação que por debaixo era terra solta sem vestígios de rocha.
Passados alguns dias um grupo restrito começou a estudar o
plano. A caserna tinha bastantes pessoas e nem todos estariam interessados na fuga.
Estariam, no entanto,
todos dispostos a arriscar-se a ser coniventes? Não era possível manter em
total segredo os preparativos de urna fuga numa caserna com tanta geme.
Sobretudo uma fuga que exigia um trabalho coletivo.
A primeira tarefa foi, portanto, preparar as pessoas e
ganhá-las para isso.
Fizemos uma discussão pormenorizada com todos os presos da
caserna e todos estiveram de acordo em se iniciar os preparativos de fuga. Foi
aceite voluntariamente o seguinte compromisso: ninguém falaria no assunto à
família nas visitas. Para maior segurança alguém lembrou, e foi acordado, que a
própria correspondência pessoal devia ser lida por um grupo escolhido para
evitar qualquer referência, mesmo involuntária, que levasse os carcereiros (que
censuravam as cartas) a aperceberem-se de que algo anormal se podia estar a
passar. Um simples entusiasmo descontrolado podia ser perigoso. Que enquanto durassem
os preparativos da fuga ninguém iria sozinho tratar qualquer assunto ao
gabinete do chefe dos guardas ou ao diretor. Que no caso de fracasso todos se
comprometiam a não fazer declarações fosse contra quem fosse, quer aos
carcereiros, quer à PIDE, ou se negariam a falar ou, como limite, declaravam
desconhecer quaisquer preparativos de fuga pessoal ou coletiva. A ligação com
o exterior sobre este assunto seria apenas da responsabilidade do organismo que
passaria a dirigir os preparativos da fuga.
Quando esta fase foi dada por concluída demos início ao
trabalho.
Éramos dez os que estávamos preparados para fugir. A maioria era funcionários politicos do PCP, mas havia também não funcionários, entre os quais alguns camaradas chegados do Tarrafal, como o Fernando Vicente e o João Faria Borda.
Éramos dez os que estávamos preparados para fugir. A maioria era funcionários politicos do PCP, mas havia também não funcionários, entre os quais alguns camaradas chegados do Tarrafal, como o Fernando Vicente e o João Faria Borda.
Naquele tempo a
caserna 4 não tinha guarda permanente em frente das janelas. A vigilância era
feita de vez em quando e havia, além disso, as rondas regulares e as formaturas
de manhã e à noite, antes do silêncio. Estudadas todas as condições concluiu-se
que a noite era a melhor altura de trabalhar na fuga. Mas para isso era indispensável
montar um serviço de vigilância ao exterior a partir da janela, para dar o
alarme, e de forma a que quando o guarda acendesse a luz e abrisse a porta tudo
e todos estivessem em ordem e dentro das suas camas para serem contados.
Fizeram-se testes e concluiu-se que o tempo mínimo gasto
pelo guarda, desde ser visto ate chegar à caserna, abrir a luz e a porta era de
23 segundos!... Isto em relação ao guarda mais rápido, o Serrado. Era este o
tempo que tinha de servir de base para todos os cálculos.
Entre os camaradas que se dispunham a participar nos
preparativos da fuga foram criados vários grupos de trabalho: um grupo que se
encarregaria de fazer a vigilância do exterior. Outro grupo que trabalharia na perfuração do
túnel. Outro ainda que se encarregaria de espalhar a terra saída do túnel por
debaixo do sobrado. Finalmente, um grupo coordenador que tinha a
responsabilidade de se manter junto da tampa aberta e daí dirigir todas as
operações, desde a mudança dos turnos até ao receber o alarme, dar ordem de
saída do túnel e fechar a tampa.
Todos fizemos um período de treino e adaptação às nossas
tarefas, a começar pelos vigilantes do exterior que tiveram de estudar o local
exato onde se deviam colocar na janela, de forma a encobrirem-se dentro da
sombra da ombreira e não se deixarem ver, nem pelo guarda, quando assumisse à
esquina, nem pelo GNR que fazia a vigilância nas ameias das muralhas da
Fortaleza, mesmo por cima da nossa caserna
Uma corda seria estendida por debaixo das camas ligando o
vigilante da janela aos camaradas que estavam junto da tampa. Ao avistar o
guarda, o vigilante daria um esticão, sinal que era recebido na boca do túnel
por alguém que mantinha permanentemente a corda esticada na mão. Recebido o
alarme o camarada transmitia o alarme imediatamente com outro puxão noutra
corda que estava presa a um pé do "mineiro". Este saía rápido, soltaria a corda
do pé (presa com uma liga elástica) e metia-se na cama. Os camaradas de serviço
junto da tampa teriam de ter a corda recolhida, a tampa fechada, e tudo em boa
ordem nos 23 segundos.
Era assim que tudo funcionaria dali em diante.
A tampa foi finalmente aberta no sobrado entre as nossas
duas camas — a minha e a do Dias Lourenço, que foi o grande dinamizador deste
projeto. Ficámos também a fazer parte do grupo coordenador da superfície. O
trabalho mais difícil, e que requeria além de boas condições físicas, rapidez e
muita coragem, era o de «mineiro». Foram seleccionados para essa tarefa, entre
outros, o Severiano Falcão, o José Magro, o José Maria do Rosário, o Chico "Caniço" e o Borda. Outros camaradas colaborariam nos vários trabalhos de vigilância e arrumação
de terras, como o Agostinho Saboga e o Alcino de Sousa.
Calculou-se que a distância entre o local onde ia começar o
túnel e a muralha seria cerca de 10 metros. Isto iria trazer acrescidas
dificuldades de realização que foi necessário ir, aos poucos, estudando e
encontrando solução. Entre os presos da caserna havia o camarada José
Alexandre, mineiro das Minas de S. Domingos. Foi ele que nos aconselhou a abrir
o túnel com uma inclinação ascendente. Isso facilitava a remoção das terras e
permitia uma mais rápida saída do túnel nos momentos de alarme. Também foi ele
que nos ensinou a técnica mais segura para escorar o túnel. As terras eram muito
soltas e havia o perigo de desmoronamento. E um desmoronamento seria a morte
quase certa do camarada que estivesse lá dentro.
A madeira para as escoras veio das malas de cada um. Iam
desaparecendo à medida que o túnel ia avançando. Quando o túnel atingiu 4/5
metros de comprimento começaram os problemas de ventilação para quem trabalhava
lá dentro. Dificuldade agravada com a forma de iluminação: a chama da vela
queimava muito oxigénio e agravava o problema da ventilação.
O Dias Lourenço propôs-se fazer um ventilador igual ao das
pequenas forjas de serralheiro. Não havia chapa mas ele construiu-o de cartão
forte. Quando o pôs a funcionar o cartão não aguentou. Mas este não foi o único
fracasso. Para resolver o problema da luz também alguém sugeriu a montagem de
iluminação eléctrica. Encontrámos forma de fizer entrar o fio e a lâmpada. Os
mais entendidos em eletricidade encarregaram-se de fazer a instalação.
Na noite em que experimentámos a ligação à instalação da
caserna como que suspendemos a respiração a aguardar o resultado. Foi um
fracasso total. Um curto-circuito pôs toda a fortaleza às escuras e houve
alarme geral.
Na visita que se seguiu os carcereiros não encontraram nada
suspeito na nossa caserna. Mas, como medida de segurança, foi decidido suspender
os trabalhos durante algum tempo, até porque também era necessário encontrar
solução para os problemas de ventilação que tínhamos pela frente.
Tinham já passado os dias de incerteza. A vida prisional
tinha voltado à normalidade, agora que tudo fazíamos para que nada viesse a
perturbar o nosso plano de fuga. Foi um tempo de espera e de reflexão depois do
incidente elétrico que quase deitara tudo a perder. Estávamos agora novamente
em condições de retomar o trabalho, mas primeiro que tudo era preciso resolver
o problema da ventilação sem a qual era difícil prolongar o túnel.
Foi o Agostinho Saboga, da Marinha Grande, quem nos deu a
chave da solução propondo a construção de um fole idêntico aos usados pelos
vidreiros. Para isso precisávamos de cabedal, ou pelo menos de uma porção de
carneira fina. Ele próprio fazia o fole, mas não queria arriscar-se com outro
material que não resultaria. Tínhamos presente o falhanço do ventilador do Dias
Lourenço exatamente por falta de material capaz.
Foi então que surge a decisão de se passar a fazer de
encadernador. A minha companheira e a companheira do Gabriel, a Encarnação,
eram as únicas entre as visitas que sabiam dos preparativos da fuga. A minha
companheira era quem cá fora se incumbia de nos resolver as dificuldades. As
ligações da organização prisional com o Partido faziam-se por seu intermédio.
Com a nossa ajuda nas visitas, com a ajuda dos camaradas cá fora e com muita
imaginação da sua parte as coisas iam entrando e saindo. Para algum assunto mais
trabalhoso a Encarnação participava e nunca virou a cara.
Pedi autorização para receber cartão, papel, fio e carneira
para encadernar uns livros para o meu filho. Foram de Salgari os primeiros
livros que lhe encadernei. Depois encadernei A Selva e fiz uma pasta de
secretária para oferecer à minha companheira. Os livros profissionais que
comprei para aprender o "ofício" também me ensinaram que com vários ácidos se
podia desenhar na carneira. Que o óxido de zinco faz cinzento, que o cloro faz
castanho, etc., etc.. Pedi para me facultarem a entrada de vários desses
produtos e expliquei para quê.
Os carcereiros iam-me vendo trabalhar e iam cedendo, talvez
na secreta esperança de que "me deixasse de políticas" corno eles aconselhavam
a tantos. Entretanto a carneira ia sobrando e o Saboga ia fazendo o fole.
Quando deu o trabalho por terminado fizemos a experiência e tivemos outra
desilusão; o ar insuflado pelo fole não chegava ao fundo do túnel. Sabíamos que
havia falta de oxigénio porque a chama que lá acendíamos se apagava passado
pouco tempo. Os camaradas corriam perigo e naquelas condições não era possível
continuar. Era indispensável fazer entrar um tubo que, aplicado ao fole,
levasse o ar até ao fundo do túnel.
Foi talvez esta a tarefa mais difícil que foi posta à minha
companheira para ela resolver. Foi à Pollux, comprou dez metros de tubo de
plástico maleável e fez o mesmo que já tinha feito para introduzir o fio
eléctrico — enrolou-o muito bem no fundo de um tacho e encheu¬o de arroz doce.
Depois decorou-o a preceito como se faz nos dias festivos. Só que uns metros de
fio eléctrico fazem pouco volume enquanto o tubo de plástico fazia um volume
maior. Por isso na visita as nossas famílias apareceram com um tacho tão grande
que dava nas vistas...
— Hoje é dia de festa lá em casa. Trazemos arroz doce para
todos!... Já pedimos autorização!...
Trazia à mistura também mais algumas guloseimas, mas era
apenas para servir de cenário. Foi um risco calculado que resultou bem.
A visita acabou. Viemos para a caserna e foram minutos de
martírio até sermos chamados para ir buscar as coisas. Por nós e por elas. Lá
fomos e lá veio o tacho com o tubo dentro.
E foi assim que retomámos os trabalhos de perfuração. A
solução do fole resultou inteiramente e agora a chama não se apagava.
Entusiasmado com o êxito do tubo, um dia, o Dias Lourenço,
numa visita, disse em segredo à minha companheira:
— E agora tens de cá meter um candeeiro!...
Não foi necessário. Bastou trazer um frasco com doce, cuja
configuração da boca permitiu adaptá-lo a candeeiro. Fez-se um furo na tampa,
meteu-se-lhe uma torcida feita de algodão e o combustível foi o petróleo que
havia na caserna, porque naquele tempo ainda era permitido cozinhar e o lume
usado eram os antigos fogareiros a petróleo.
O trabalho foi retomado. O túnel atingiu dez metros sem
grandes novidades, mas a muralha não aparecia. Cada vez era mais difícil
cumprir os 23 segundos nos alarmes.
A saída fazia-se em corrida de coelho, mas recuando porque a
largura e altura do túnel não permitia virar o corpo. Para tornar a saída mais
rápida alguém lembrou molhar o chão do túnel. A terra era barro e molhado
permitia um melhor deslize na descida quando era necessário sair rápido.
Estávamos perto do Natal de 1953 quando se atingiu a
muralha. Há mais de três meses que tínhamos iniciado o túnel. Foi um momento de
alegria. Agora era preciso a cabeça fria para a parte final. O túnel
tinha precisamente 12 metros e na posição em que os camaradas trabalhavam não
era possível atacar a muralha. Segundo os camaradas que trabalhavam no túnel
era indispensável abrir no fim do túnel uma plataforma onde fosse possível
trabalhar sentado e foi o que decidimos fazer. Entretanto o Natal chegou e
decidimos suspender os trabalhos e fazer um Natal festivo e calmo, naturalmente
cheios de confiança.
Estávamos atarefados a preparar a ceia da véspera, e quando
o Faria Borda se esmerava a preparar os seus petiscos o guarda abriu a porta e
disse:
— Os senhores Faria Borda, Fernando Vicente e Joaquim Casquinha
preparem as suas coisas para saírem em liberdade!
Foi um corrupio de abraços. Ao fim de 18 anos de prisão
quase todos cumpridos no campo de concentração do Tarrafal, os nossos camaradas
iam finalmente conhecer a liberdade.
Tivemos nesse ano um Natal duplamente festivo: o nosso
projeto caminhava de vento em popa e os três camaradas marinheiros, principais
personagens do heróico levantamento da marinha de guerra portuguesa contra o
fascismo em 1936 tinham saído em liberdade.
Qualquer dos três
camaradas conhecia em pormenor Os nossos planos de fuga e estava a colaborar
activamente nos trabalhos. Mas numa rápida apreciação da situação concluímos
que a sua saída não alterava em nada Os nossos planos. A confiança nos
camaradas era total. Não havia razão para qualquer preocupação.
Os trabalhos iriam continuar logo a seguir aos festejos do
Natal e desta vez com a colaboração de um novo camarada que entretanto acabava
de chegar à nossa caserna — o camarada Carlos Pinhão, que imediatamente se
integrou no grupo de trabalho dos vigilantes.
Estávamos em Janeiro. Era uma noite de luar, aquele nosso
conhecido luar de Janeiro que torna as noites luminosas. Uma aragem fresca
soprava do lado do mar e quando assim era ouviam-se mais distintamente as vagas
contra as muralhas, e a ondulação invadia com mais força as cavernas
subterrâneas da Fortaleza, percorrendo-as, fazendo bater as pedras soltas
contra o fundo rochoso. Durante os anos que duraram a nossa prisão tínhamo-nos
familiarizado com este som marítimo nas noites de maior invernia. Da mesma
forma que nos era familiar a ronca do farol do Cabo Carvoeiro avisando a
navegação nos dias e nas noites de nevoeiro.
Mas eram estas noites de mar batido as melhores noites que
tínhamos para trabalhar dentro do túnel, agora que estávamos na derradeira fase
de atravessar a muralha, arrancando-lhe pedra a pedra, até encontrar do lado de
lá a liberdade que procurávamos.
No pleno silêncio das noites calmas qualquer ruído suspeito
podia alertar a sentinela da GNR que se deslocava por cima da nossa caserna. O
seu alerta ouvia-se de vez em quando e repercutira-se depois por todos os
outros postos de vigia, por cima das ameias, à volta da Fortaleza.
Naquela noite contávamos com o barulho vindo do mar e com o
som das pedras a bater umas contra as outras nos fundos da Fortaleza para
abafar os ruídos metálicos das ferramentas que tínhamos começado a usar para
arrancar as pedras das muralhas. Por isso se trabalhava com absoluta confiança
e longe de pensar que o perigo nos espreitava.
Passava da meia-noite. Pelas nossas contas não tardava que o
guarda viesse passar a ronda habitual.
De vigia à janela estava naquele turno o camarada Carlos
Pinhão. Junto da tampa estávamos eu, o Dias Lourenço e o Gabriel. Como de
costume havia vários camaradas bem acordados.
Não me recordo já de quem estava a trabalhar dentro do
túnel. Mas lembro-me ainda bem (como de um mau pesadelo) do momento em que
recebi do Carlos um esticão de alarme, seguido de outros pequenos esticões
indefinidos. O alarme foi imediatamente transmitido para dentro do túnel. O
camarada saiu e foi meter-se na sua cama. A tampa foi fechada como de costume.
Passaram-se alguns segundos para além do previsto sem o guarda aparecer. Por fim
ouvimos a sentinela gritar lá de cima:
— O que é que estes gajos estão a fazer em pé a estas
horas?!...
Concluímos que falava para o guarda. Foi um momento de
grande surpresa e de expectativa. A sentinela da GNR tinha avistado o Carlos
Pinhão à janela e deu o alarme.
Tomámos rapidamente algumas medidas: quando finalmente o
guarda Serrado acendeu a luz e abriu a porta pedimos que chamasse urgentemente
o enfermeiro porque tínhamos um camarada bastante doente com urna cólica.
Olhou-nos incrédulo mas viu o Guilherme de Carvalho na cama a torcer-se com
dores e uns camaradas a acender o lume para aquecer a água e outros com um saco
na mão para lhe aplicar sobre a dor.
Acabou, por nossa insistência, por ir chamar o enfermeiro.
Entretanto vários camaradas se levantaram e todos esperávamos o enfermeiro "alarmados com o estado de saúde do camarada...".
Veio o enfermeiro e meio desconfiado viu o "doente". Para
tornar mais verídica a "doença" o Guilherme tinha suportado sobre os rins um
saco tão quente que a pele estava a empolar. Mesmo assim ficámos convencidos de
que, quer o enfermeiro, quer o guarda, não tinham "comido" a explicação...
Quando saíram e voltaram a apagar a luz decidimos jogar tudo
por tudo; montámos de novo um dispositivo de vigilância e metemos dentro do
túnel tudo quanto nos podia denunciar numa busca à caserna: o fole, o tubo, o
fio eléctrico que tinha servido para a experiência falhada, o candeeiro, toda a
roupa suja usada nas escavações e até o rodo que servia para espalhar a terra
por debaixo do sobrado. Depois tapámos com terra a boca do túnel até ao nível
da tampa e fechámo-la o melhor possível. Só nos restava esperar pelos acontecimentos que se haviam de
seguir.
Entretanto o Carlos Pinhão foi-nos contando o que se tinha
passado com ele: viu o guarda aparecer na esquina e deu o alarme. Mas
inexplicavelmente o Serrado em vez de vir em direcção à caserna seguiu em
frente para o lado do mar. Para não o perder de vista avançou um passo e
debruçou-se mais na janela por detrás dos vidros. Devia ter sido nesse
movimento que ele ultrapassou a zona escura de segurança e foi visto de cima
pela sentinela. Ficou sempre por entender o comportamento do guarda Serrado,
mas é muito possível que aquele luminoso luar de Janeiro, com que não contávamos,
nos tivesse traído, evadindo a zona escura demarcada e que também o guarda
Serrado tivesse avistado a silhueta do Carlos. Pode ter querido enganar o
Carlos dando uma volta maior.
No dia seguinte, depois da alvorada, foi servido o café com
toda a normalidade. Passado pouco tempo um guarda veio dizer-nos para pormos as
camas na rua.
—É para lavarmos a caserna? — perguntámos.
—Depois se verá! — respondeu misteriosamente o guarda.
Pusemos as camas na rua como era habitual para as limpezas,
mas logo a seguir chegou o chefe dos guardas. Vítor Ramos, com o ajudante
Bastos e mais um grupo de guardas. Esperámos com o coração oprimido o resultado
da busca. Alguns de nós disfarçávamos o nosso nervosismo brincando com uma
bola, mas os nossos sentidos estavam todos virados para o que se estaria a
passar lá dentro.
Daí a pouco o Bastos sai e regressa com um martelo e uma
picareta. Olhámos uns para os outros preocupados. Tudo parecia agravar-se...
A busca foi demorada mas em certo momento sentimos que tudo
estava perdido: foi quando ouvimos o ruído de tábuas a serem levantadas. A
terra que tínhamos tirado do túnel estava espalhada por debaixo do soalho. Em
qualquer local onde fosse levantada uma tábua se veria terra solta e com sinais
de ter sido mexida. E terra solta e fresca era sinal de buraco em qualquer
sítio: era só questão de procurar.
E foi o que aconteceu. Não tardou que ouvíssemos um certo
sussurro e urna agitada movimentação. Estava tudo descoberto!...
A partir dali foi apenas necessário acalmar os desânimos e
preparar as pessoas para o embate com os carcereiros ou mesmo com a PIDE.
Pela tarde adiante fomos transferidos para a sala 3 — a
nossa primeira caserna. Ficámos todos sem visitas e sem correspondência até
apuramento de responsabilidades. Meteu inquérito da PIDE. Fomos um a um
chamados a depor. "Seriam castigados todos aqueles que não provassem a sua
inocência." Como ninguém prestou qualquer declaração contra quem quer que
fosse, o castigo foi coletivo — 30 dias de isolamento na caserna.
Joaquim Campino
Muitos dos comentários aos jornais online são grunhidos de criaturas infelizes que vivem à margem da sociedade, mas vi um aqui que me encheu as medidas:
Por Antonio Santos (não verificado) | 1 Fevereiro, 2013 - 12:09
Pois a melhor condenação é retirar o dinheirinho do BPI, é o que farei
Exatamente! Quem não gostou das declarações do presidente do banco não lhe financie o referido banco. Simples!
Agora exigir que o primeiro-ministro perca tempo com folclore e populismos de um partido com nome de claque de futebol é que se calhar não é o mais oportuno.
PS: Mas também há grunhidos.
Por Antonio Santos (não verificado) | 1 Fevereiro, 2013 - 12:09
Pois a melhor condenação é retirar o dinheirinho do BPI, é o que farei
Exatamente! Quem não gostou das declarações do presidente do banco não lhe financie o referido banco. Simples!
Agora exigir que o primeiro-ministro perca tempo com folclore e populismos de um partido com nome de claque de futebol é que se calhar não é o mais oportuno.
PS: Mas também há grunhidos.
Atualizei a lista de blogs penicheiros à direita, na qual incluí a catrefada deles que estão associados ao Peniche Online. As respostas ao questionário sobre o "scouting" continuam válidas, mas antes de voltar a elas ainda vou explorar um tema que me parece ter moderado interesse.
As atualizações do blog vão continuar a ser parcas, mas não tem havido muito por onde se pegue.
Por agora é tudo, abraços.
As atualizações do blog vão continuar a ser parcas, mas não tem havido muito por onde se pegue.
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